terça-feira, 20 de maio de 2014

Aquele estranho animal



Texto de Mário Quintana

Os do Alegrete dizem que o causo se deu em Itaqui, os de Itaqui dizem que foi no Alegrete, outros juram que só poderia ter acontecido em Uruguaiana. Eu não afirmo nada: sou neutro.

Mas, pelo que me contaram, o primeiro automóvel que apareceu entre aquela brava indiada, eles o mataram a pau, pensando que fosse um bicho. A história foi assim como já lhes conto, metade pelo que ouvi, metade pelo que inventei, e a outra metade pelo que sucedeu às deveras. Viram? É uma história tão extraordinária mesmo que até tem três metades... Bem, deixemos de filosofanças e vamos ao que importa. A coisa foi assim, como eu tinha começado a lhes contar.

Ia um piazinho estrada fora no seu petiço - tropt, tropt, tropt - (este é o barulho do trote) - quando de repente ouviu - fufufupubum! Fufufupubum chiiiipum!

E eis que a “coisa”, até então invisível, apontou por detrás de um capão, bufando que nem touro brigão, saltando que nem pipoca, se traqueando que nem velha coroca, chiando que nem chaleira derramada e largando fumo pelas ventas como a mula-sem-cabeça.

“Minha Nossa Senhora!”

O piazinho deu meia-volta e largou numa disparada louca rumo da cidade, com os olhos do tamanho de um pires e dentes rilhando, mas bem cerrados para que o coração aos corcoveios não lhe saltasse pela boca.

È claro que o petiço ganhou luz do bicho, pois no tempo dos primeiros autos eles perdiam para qualquer matungo.

Chegado que foi, o piazinho contou a história como pôde, mal e mal e depressa, que o tempo era pouco e não dava para maiores explicações, pois já se ouvia o barulho do bicho que se aproximava.

Pois bem, minha gente: quando este apareceu na entrada da cidade, caiu aquele montão de povo em cima dele, os homens uns com porretes, outros com garruchas que nem tinham tido tempo para carregar de pólvora, outros com boleadeiras, mas todos de a pé, porque também nem houvera tempo para montar, e as mulheres umas empunhando a suas vassouras, outras as suas pás de mexer marmelada, e os guris, de longe, se divertindo com os seu bodoques, cujos tiros iam acertar em cheio nas costas dos combatentes. E tudo abaixo de gritos e pragas que nem lhes posso repetir aqui.

Até que enfim houve uma pausa para respiração.

O povo se afastou, resfolegante, e abriu uma clareira no meio da qual se viu o auto emborcado, amassado, quebrado, escangalhado, e não digo que morto, porque as rodas ainda giravam no ar, nos últimos transes de uma teimosa agonia. E quando as rodas pararam, as pobres, eis que o motorista, milagrosamente salvo, saiu penosamente engatinhado por debaixo dos escombros de seu ex-automóvel.

- A la pucha! - exclamou então um guasca, entre espantado e penalizado - o animal deu cria!

*****

De “Caderno H”, coluna de Mário Quintana no jornal Correio do Povo de Porto Alegre, no livro; “Prosa & Poesia, meu único livro autografado por Mário Quintana, em 09.06.1978.


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