quinta-feira, 29 de maio de 2014

Briga de literatos

A tristeza de Olavo Bilac

Olavo Bilac sai cemitério ao lado de Coelho Neto, em 20 de julho de 1915. São amigos há décadas. Trabalhavam juntos, as horas livres em bares. Até dividiram a mesma casa, antes de Coelho Neto casar-se em 1890. Mas, até o enterro do poeta Annibal Theophilo, naquele fim de tarde, o amigo nunca vira Bilac tão taciturno. Na confeitaria Colombo, mesa de sempre, ao fundo esquerdo, pergunta:

− Bilac, o que está ocupando tanto seus pensamentos? Nunca o vi assim antes!

O poeta murmura algo sobre a finitude, mas desfia a teia de vaidades da Academia Brasileira de Letras, dos saraus literários, da vida cultural naquela que, um século depois, é considerada a belle époque tropical. Por fim, constata:

− O problema não é a Academia. Somos nós, os homens de letras. Não vê o que acaba de acontecer? O Gilberto Amado matou o Annibal com um tiro pelas costas e por quê? Porque não somos capazes de perdoar ao adversário um erro de gramática, a má colocação de um pronome, a falta de uma crase ou um verso de pé quebrado.


Sopapos a 100%

O filólogo português Antônio Cândido de Figueiredo (1846-1925) e o escritor e filólogo brasileiro Heráclito Graça (1837-1914) quase trocaram sopapos por causa da grafia de uma palavra: “percentagem” ou “porcentagem”? O luso defendia a primeira; o brasileiro, não.

− Homessa! – exclamava um

− Co´os diabos! – obtemperava outro.

(Eles usavam expressões como essas e palavras como “obtemperar”.)

Por que jornais e revistas preferem “porcentagem”, embora vários dicionários registrem “percentagem”?

Eles também registram “porcentagem”. A expressão latina per centum está na raiz de “percentagem”. Era o que argumentava Figueiredo e, dizia ele, não me venhas de borzeguins ao leito. Alguns sábios preferem essa forma, pela razão latina. Heráclito Graça dizia que a preposição latina per tomou a forma de “por” em português, e ninguém diria “per cento”. Então, perguntava, por que dizer “percentagem”?

− É porcentagem e acabou-se tudo.

Figueiredo sorria-se e redarguia (boa palavra da época):

− Então por que não rediges nem locutas “porfilhar”, “porante” e “pormeio”, ó pá?


Discussão tão proveitosa para o mundo murchou em 1943, quando a Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da ABL, oficializou as duas formas, registrando “percentagem”, “percentagista”, “percentil”, “percentilagem” e “percentual”. E “porcentagem”, “porcentual” e o substantivo “porcento”.

O desaforo da “contradição

O crítico Sylvio Romero (1851-1914) e seu conterrâneo, o gramático sergipano Laudelino Freire (1873-1937), trocaram ferroadas em 1911. Freire dedicou estudo às contradições de Romero. Em Minhas Contradições, Romero revidou, dizendo que o autor do Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa, cinco volumes, desconhecia a palavra “contradição”. E despejou uma cascata de insultos, como “reles criticarolho”, “burregote”, “alma de lesma”. Só o chamava de “Lomelino Freitas”.

Freire afirmava que era contradição, por exemplo, Romero chamar a lógica de “arte e ciência”. O outro reagiu em versos:

         Em ser lógica – ciência
         E ser – arte, oh! Asneirão
         Haverá qualquer tolice
         Haverá contradição?!

Freire, em As Suas Contradições, explodiu:

− Ao invés de indignação, tenho, pelo contrário, dó e piedade de olhar a ruvinhosa carcaça desse velho energúmeno, que vive a desrespeitar-se a si mesmo, antes que o faça a outrem, finando sua existência na ebulição do resíduo alcoólico, do despeito e da inveja.


O haver da discórdia

O professor de português do tradicional Colégio Pedro II, Carlos de Laet (1847-1927) não era de recusar polêmica. Quando o português Camilo Castelo Branco (1825-1890), na antologia Cancioneiro Alegre, diminuiu os méritos do romântico Fagundes Varela, foi o franco-atirador Laet que saiu em defesa do poeta morto quatro anos antes.

Camilo apontara, com ironia, erros de sintaxe “Varela escrevera num prefácio “haviam brisas e passarinhos...”). Bastou para Laet escavar solecismos do autor de Amor de Perdição. Na Revista Brasileira, atirou em Camilo um erro no próprio Cancioneiro: “falenas a esvoaçarem-se nos andá-açus”, quando o verbo “esvoaçar” não é reflexivo.

Camilo respondeu, nos fascículos de Ecos Humorísticos do Minho, com apoio em clássicos, que “esvoaçarem-se” era aceitável e atacou os brasileiros:

− Se me quiserem obsequiar dum modo mais significativo e proveitoso, mandem-me um papagaio, uma cutia e alguns frascos de pitanga. Quanto à linguagem, muito obrigado, mas não se incomodem.
Laet rebateu, fichando outro escorrega do romancista luso, numa de suas traduções, O Romance de um Rapaz Pobre: “Houveram coisas terríveis...” Porretada do mestre do Pedro II.

− O senhor Castelo Branco quer que lhe mande uma cutia, pois tome a este “houveram” que também é bicho bravio, e veja se o aclima em São Miguel de Seide.



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