Arthur Azevedo
Ilustração de Maurício Paraguassu
Naquele dia o ministro chegou de mau
humor ao seu gabinete, e imediatamente mandou chamar o diretor-geral da
Secretaria.
Este, como se movido fosse por uma
pilha elétrica, estava, poucos instantes depois, em presença de Sua Excelência,
que o recebeu com duas pedras na mão.
-
Estou furioso! - exclamou o conselheiro; - por sua causa passei por uma
vergonha diante de Sua Majestade o Imperador!
- Por minha causa? - Perguntou
o diretor-geral, abrindo muito os olhos e batendo nos peitos.
- O senhor mandou-me na
pasta um decreto de nomeação sem o nome do funcionário nomeado!
- Que
me está dizendo, Excelentíssimo?...
E o diretor-geral, que era tão
passivo e humilde com os superiores, quão arrogante e autoritário com os
subalternos, apanhou rapidamente no ar o decreto que o ministro lhe atirou, em
risco de lhe bater na cara, e, depois de escanchar a luneta no nariz, confessou
em voz sumida:
- É
verdade! Passou-me! Não sei como isto foi...
- É imperdoável esta falta
de cuidado! Deveriam merecer-lhe um pouco mais de atenção os atos que têm de
ser submetidos à assinatura de Sua Majestade, principalmente agora que, como
sabe, está doente o seu oficial-de-gabinete!
E, dando um
murro sobre a mesa, o ministro prosseguiu:
- Por sua causa esteve
iminente uma crise ministerial: ouvi palavras tão desagradáveis proferidas
pelos augustos lábios de Sua Majestade, que dei a minha demissão!...
- Oh!...
- Sua Majestade não o
aceitou...
- Naturalmente; fez Sua
Majestade muito bem.
- Não a aceitou porque me
considera muito, e sabe que a um ministro ocupado como eu é fácil escapar um
decreto mal copiado.
- Peço mil perdões a Vossa
Excelência - protestou o diretor-geral, terrivelmente impressionado pela
palavra demissão. - O acúmulo de serviço fez com que me escapasse tão grave
lacuna; mas afirmo a Vossa Excelência que de agora em diante hei de ter o maior
cuidado em que se não reproduzam fatos desta natureza.
O ministro
deu-lhe as costas e encolheu os ombros, dizendo:
- Bom! Mande reformar essa
porcaria!
O diretor-geral saiu, fazendo muitas
mesuras, e chegando no seu gabinete, mandou chamar o chefe da 3ª seção, que o
encontrou fulo de cólera.
- Estou furioso! Por sua
causa passei por uma vergonha diante do Sr. Ministro!
- Por minha causa?
- O
senhor mandou-me na pasta um decreto sem o nome do funcionário nomeado!
E atirou-lhe o papel, que caiu no
chão. 0 chefe da 3ª
seção apanhou-o, atônito, e, depois de se certificar do erro, balbuciou:
- Queira Vossa Senhoria
desculpar-me, Sr. Diretor... são coisas que acontecem... havia tanto serviço...
e todo tão urgente!...
- O Sr. Ministro ficou, e
com razão, exasperado! Tratou-me com toda a consideração, com toda a
afabilidade, mas notei que estava fora de si!
- Não
era caso para tanto.
- Não era caso para tanto?
Pois olhe, Sua Excelência disse-me que eu devia suspender o chefe de seção que
me mandou isto na pasta!
- Eu...
Vossa Senhoria...
- Não o suspendo; limito-me
a fazer-lhe uma simples advertência, de acordo com o regulamento.
- Eu...
Vossa Senhoria.
- Não me responda! Não faça
a menor observação! Retire-se, e mande reformar essa porcaria!
O chefe da 3ª seção retirou-se confundido, e foi ter à mesa do amanuense que tão mal copiara o decreto:
O chefe da 3ª seção retirou-se confundido, e foi ter à mesa do amanuense que tão mal copiara o decreto:
- Estou furioso, Sr.
Godinho! Por sua causa passei por uma vergonha diante do sr. diretor-geral!
- Por
minha causa?
- O senhor é um empregado
inepto, desidioso, desmazelado, incorrigível! Este decreto não tem o nome do
funcionário nomeado!
E atirou o
papel, que bateu no peito do amanuense.
- Eu devia propor a sua
suspensão por 15 dias ou um mês: limito-me a repreendê-lo, na forma do
regulamento! 0 que eu teria ouvido, se o sr. diretor-geral me não tratasse com
tanto respeito e consideração!
- O
expediente foi tanto, que não tive tempo de reler o que escrevi...
- Ainda o confessa!
- Fiei-me em que o sr.
chefe passasse os olhos...
- Cale-se!... Quem sabe se
o senhor pretende ensinar-me quais sejam as minhas atribuições?!...
- Não,
senhor, e peço-lhe que me perdoe esta falta...
- Cale-se, já lhe disse, e
trate de reformar essa porcaria!...
O amanuense
obedeceu.
Acabado o serviço, tocou a
campainha. Apareceu um contínuo.
- Por sua causa passei por
uma vergonha diante do chefe da seção!
- Por minha causa?
- Sim, por sua causa! Se
você ontem não tivesse levado tanto tempo a trazer-me o caderno de papel
imperial que lhe pedi, não teria eu passado a limpo este decreto com tanta
pressa que comi o nome do nomeado!
- Foi
porque...
- Não se desculpe: você é
um contínuo muito relaxado! Se o chefe não me considerasse tanto, eu estava
suspenso, e a culpa seria sua! Retire-se!
- Mas...
- Retire-se, já lhe disse!
E deve dar-se por muito feliz: eu poderia queixar-me de você!...
O contínuo saiu dali, e foi vingar-se
num servente preto, que cochilava num corredor da Secretaria.
- Estou
furioso! Por sua causa passei pela vergonha de ser repreendido por um
bigorrilhas!
- Por minha causa?
- Sim. Quando te mandei
ontem buscar na portaria aquele caderno de papel imperial, por que te demoraste
tanto?
- Porque...
- Cala a boca! Isto aqui é
andar muito direitinho, entendes? - porque, no dia em que eu me queixar de ti
ao porteiro estás no olho da rua. Serventes não faltam!...
O preto não
redarguiu.
O pobre diabo não tinha ninguém abaixo
de si, em quem pudesse desforrar-se da agressão do contínuo; entretanto, quando
depois do jantar, sem vontade, no frege-moscas, entrou no pardieiro em que
morava, deu um tremendo pontapé no seu cão.
O mísero animal, que vinha, alegre,
dar-lhe as boas-vindas, grunhiu, grunhiu, grunhiu, e voltou a lamber-lhe
humildemente os pés.
O cão pagou pelo servente, pelo
contínuo, pelo amanuense, pelo chefe da seção, pelo diretor-geral e pelo
ministro!...
****
Texto extraído do livro "Os 100 melhores contos
de humor da literatura universal",
Ediouro – Rio de Janeiro, 2001, organização de Fábio
Moreira da Costa, pág. 293.
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