Moacyr Scliar por Fraga
Não pensa nisto, Jorge
-
Estou ficando velho, Zilda. Velho e fraco. Sinto que não vou durar muito.
- Não
pensa nisto, Jorge. Pensa nas coisas boas da vida.
- Estas dores no estômago.
Para mim isto é câncer. O médico diz que não, mas acho que ele está me
enganando. Para mim é câncer, Zilda.
- Não
pensa nisto, Jorge. Pensa nos momentos que vivemos juntos.
- Eu sei que é câncer,
Zilda. Já vi muita gente morrer dessa doença. É uma morte horrível, Zilda. A
gente vai se consumindo aos poucos.
- Não pensa nisto, Jorge.
Pensa no teu trabalho. Pensa nos teus colegas, no chefe que gosta tanto de ti.
- Primeiro a gente
emagrece. Já estou emagrecendo. Perdi cinco quilos neste ano. Aliás, como
passou ligeiro este ano. Como passam ligeiro os anos. Como passam ligeiro os
dias, as horas. Quando a gente vê, já é noite. Quando a gente vê, terminou o
mês. Quando a gente vê, acabou a vida.
- Não
pensa nisto, Jorge. Pensa na tua turma do bolão, gente alegre, divertida.
- Logo terei de me
hospitalizar. E no hospital a gente vai ligeirinho, Zilda. Acho que é por causa
do desamparo. O desamparo é horrível.
- Não pensa nisto, Jorge.
Pensa nos teus filhos. Pensa na Rosa Helena, no Zé. Pensa no Marquinhos.
- Tenho medo de morrer,
Zilda. Me envergonho disso, afinal, já vivi tanto, mas a verdade é que tenho
medo de morrer. A morte é o fim, Zilda. Para mim é o fim. Não acredito na vida
após túmulo. Acho que na tumba acaba tudo. A carne se desprende dos ossos, os
cabelos caem, fica a caveira à mostra. Isto é a morte, Zilda. Isto é que é a
morte.
- Não pensa nisto, Jorge.
Pensa na tua horta. Pensa nas galinhas, Jorge. Pensa numa galinha chocando os
ovos, Jorge.
- Uma
galinha com câncer, Zilda?
- Por
que não, Jorge, por que não.
Minuto de silêncio
O rei morreu, e o governo decretou:
no dia seguinte ao do enterro, às dez horas da manhã, toda a população deveria
guardar um minuto de silêncio. Assim foi feito, e à hora aprazada um pesado
silêncio caiu sobre todo o país.
As pessoas que estavam na rua viam
outras pessoas, absolutamente imóveis, em silêncio. Supostamente
deveriam estar pensando no monarca falecido, e, de fato, muitos pensavam nele;
na verdade quase todos, a exceção sendo representada por um professor de
matemática que tão logo ficou em silêncio, pôs-se a fazer cálculos e descobriu
que a soma dos minutos de silêncio de vinte e seis milhões e oitocentos mil
cidadãos equivalia a cinquenta anos, exatamente a idade que tinha o rei ao
falecer. Uma vida se perdeu, pensou o professor, outra vida se está perdendo
agora, no silêncio. E logo depois: não está se perdendo, não inteiramente, pois
algo descobri -
o que será?
Nesse momento, na maternidade, sua
mulher dava a luz a uma criança que, portadora de múltiplas lesões congênitas,
não resistiu: viveu apenas um minuto. O tempo suficiente para que a mãe a
batizasse com o nome do saudoso rei.
No mundo das
letras
Vem à livraria nas horas de maior
movimento, mas isso, já se sabe, é de propósito: facilita-lhe o trabalho.
Rouba livros. Faz isso há muitos
anos, desde a infância, praticamente. Começou roubando um texto escolar que
precisava para o colégio: foi tão fácil que gostou; e passou a roubar romances
de aventura, livros de ficção científica, textos sobre arte, política, ciência,
economia. Aperfeiçoou tanto a técnica que chegava a furtar quatro, cinco livros
de uma vez. Roubou livros em todas as cidades por onde passou. Em Londres, uma
vez, quase o pegaram; um incidente que recorda com divertida emoção.
No início, lia os livros que roubava.
Depois, a leitura deixou de lhe interessar. A coisa era roubar por roubar, por
amor à arte; dava os livros de presente ou simplesmente os jogava fora. Mas
cada vez tinha menos tempo para ir às livrarias; os negócios o absorviam
demais. Além disso, não podia, como empresário, correr o risco de um flagrante.
Um problema - que ele resolveu como resolve todos os problemas, com argúcia,
com arrojo, com imaginação.
Zás! Acabou de surrupiar um. Nada de
espetacular nessa operação: simplesmente pegou um pequeno livro e o enfiou no
bolso. Olha para os lados; aparentemente ninguém notou nada. Cumprimenta-me e
se vai.
Um minuto depois retorna. Como é que
me saí, pergunta, não sem ansiedade. Perfeito, respondo, e ele sorri,
agradecido. O que me deixa satisfeito; elogiá-lo é não apenas um ato de
compaixão, é também uma medida de prudência. Afinal, ele é o dono da livraria.
Nenhum comentário:
Postar um comentário