Lya Luft
Hoje quero esquecer educação,
deseducação, abandono, desinteresse, incompetência, mediocridade: quero falar
da morte dos nossos afetos, de mais um amigo perdido. Figura inesquecível, de
quem não darei o nome, pois tantos mereceriam estar aqui citados. Quem o
conheceu sabe de quem falo. Quero nele homenagear os bons afetos que nos ajudam
a viver, e a crescer, especialmente aqueles que foram originais, inimitáveis
como este, e que nos fazem sentir quanto nos dedicamos a bobagens, sofremos por
tolices, nos desperdiçamos em futilidades (não que futilidades não sejam
necessárias, ou seríamos uma manada de bois obtusos ruminando o nada). Mas
devíamos lhes reservar um espaço um pouco menor, e quem sabe o choque da morte,
da doença, do drama humano, em qualquer idade e lugar, nos fizesse rever alguns
conceitos, elaborar alguns valores – ainda que por poucas horas ou semanas.
Quando morre alguém que a gente ama,
seja amigo, amado, alguém da família, todo o resto diminui, fica encoberto por
um nevoeiro, tudo para. O mundo é pura sombra, o planeta não gira, e se gira
não interessa. Estamos petrificados no choque, na dor, na inconformidade, às
vezes na autocompaixão. Conheci um viúvo que diante da mulher morta gritava:
“Como é que isso foi me acontecer?”. Ele tinha sofrido esse último tipo de
traição: a amante Morte sempre vence. Tanto mais quanto mais não aceitarmos,
com o tempo, que aqueles que morrem apenas se transformam; enveredam por outra
dimensão; vão crescer e se aperfeiçoar mais; ou se escondem, fingem-se de
mortos e nos espiam lá do seu enigma, e nos cuidam, conforme a crença de cada
um.
Quando foi bom o amor,
os mortos pedem que a gente não os perturbe, e que viva sem muito desgosto e
sem mórbido luto. Pedem que abaixemos o ruído das nossas aflições, e que,
porque os amamos, seja agora com um amor que não os algeme. Se a onda natural
de culpa for excessiva e tiver algum real fundamento, vamos nos agarrar
desesperadamente aos mortos – não para que nos ensinem a viver de novo, mas
como bandeiras escuras de isolamento e rancor.
Quando estavam de bom
humor, os deuses abriram as mãos e soltaram neste mundo os oceanos e as
sereias, os campos onde corre o vento, as árvores com mil vozes, as manadas, as
revoadas – e, para atrapalhar, as pessoas. Que passaram a correr meio
desnorteadas atrás de coisas que nem sabem direito: a mulher mais sedutora, o
homem mais poderoso, ou coisa nenhuma. Tudo menos parar e pensar. Enquanto isso
a Morte revira seus grandes olhos de gato, termina de palitar os dentes e
prepara o bote: nós nunca estamos preparados.
Nem eu que, como todos, perdi muitos
afetos. Mas isso me ensinou a não acreditar demais na morte nem desistir da
esperança, que rebrilha entre o cascalho bruto. A gente tem de aprender a
enxergar, tem de crescer como, dizem as lendas, crescem ainda nos silenciosos
túmulos os cabelos de quem se foi (mas hoje a gente é cremada, nem vermes nem
longas cabeleiras). A Morte, amiga indesejada, vai colhendo alguns dos que mais
amamos, e os esconde nas suas largas mangas. Quando trabalhamos ou nos
divertimos, ela passeia pelas praças, sobe nos telhados mais altos, e aponta
aqui e ali seu dedo ossudo: este, este, esta, aquela. Às vezes vários num só
golpe.
Ela é natural, dizem; é inevitável,
sabemos. Mas a gente não entende, não aprende, não se conforma. Porque não se
decifra esse enigma. Porque não somos bons alunos nessa dura escola.
Nenhum comentário:
Postar um comentário