quarta-feira, 28 de maio de 2014

O amargo doce da vida



O que é doce a princípio, se amarga no fim”. Era o que me repetia, mateando num banco do bolicho, o velho Germano. Todas as tardes, no lusco-fusco, chegava com a cuia e uma garrafa térmica. Era um homem desesperançado, judiado pela vida. Entre um chimarrão e outro, desfiava seus infortúnios. Morava perto, numa casinha de madeira, onde se enfurnava no inverno e ali lambia as feridas, nunca cicatrizadas, como um cusco pesteado. Dentro do rancho, lutava contra seus fantasmas que sempre voltavam para tirar-lhe a paz nas imensas madrugadas insones.

O chimarrão também é assim. No início, é o prazer, mas, depois do último gole, resta apenas o gosto amargo na boca.” Olhava-o e não sabia o que responder, era apenas um guri, o senhor compreende? Às vezes, fazia o papel de advogado do diabo: “Seu Germano, o senhor me desculpe, mas a vida também não tem as coisas boas”. Não respondia de pronto, chupava a bomba devagar, e falava depois de ouvir o porongo roncar: “Meu filho, na primavera da vida, pensamos isso. Depois, no outono, nos damos conta das imensas injustiças que carregamos por debaixo do poncho”.

Gostava de me apontar as agruras terríveis da indiada do rincão. Lembrava o caso do menino Lalau, que fora criado por um capataz desumano na Fazenda Santa Luzia. Essa criatura sofria nas mãos daquele infeliz, trabalhando de sol a sol, sem escola, andava aos farrapos, com frio e fome. De tanto apanhar e sofrer constantes humilhações, olhava só pro chão, de vergonha e de medo. Vivia como um bicho. Dormia na estrebaria, o coitado. Foi então que, um dia, o zaino de estimação do homem escapou do piquete e perdeu-se nuns matagais. Botaram a culpa no guri. Depois de recapturarem o flete, os peões o ataram num palanque e o castigaram tanto que acabou ficando tantã. Foi abandonado ao relento, na estrada e passou a viver de migalhas. Algum tempo depois, Lalau ficou doente e morreu. “Pode uma coisa dessas. Por que tanta maldade no mundo?”, perguntava-me o Germano, indignado. Naquela época, era assim, todo mundo fazia o que queria, era senhor e dono de quem criava. De bicho e de gente.

Eu escutava e pensava. Às vezes, concordava, outras, investia contra o pessimismo. “Seu Germano, a vida é boa”, insistia. Ele ria. “Vai chegar a hora em que tu vais me dar razão.” Nunca dei razão pro Germano. Passei a lutar diariamente contra essa premissa. Até aprendi a andar com uma rapadura no bolso da bombacha. Depois do mate, saboreio um pedaço. Só pra ficar com o gosto adocicado no céu da minha boca...

Paulo Mendes

(Da coluna de crônicas Campereada,
que sai aos domingos no Correio do Povo)


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