Em novo livro, Claudinho Pereira relembra histórias
da noite de Porto Alegre
da noite de Porto Alegre
Entre os anos 1960 e 1970, Porto
Alegre viveu um despertar boêmio. A abertura das primeiras boates e as mudanças
de comportamento por que passou a juventude foram testemunhadas e
experienciadas por Claudinho Pereira, discotecário de várias das principais
casas noturnas da cidade.
- Mas antes disso, eu já
colocava som nas festinhas em garagens do Bom Fim - interrompe Claudinho, 65
anos.
Estamos conversando ao telefone sobre
Na Ponta da Agulha, livro que ele
lançou no na Feira do Livro de 2012, um relato pessoal do DJ, radialista e cineasta
sobre esse período um tanto esquecido no imaginário da Capital.
DJ desde os tempos em que o
profissional era chamado de “discotecário”, radialista e cineasta desde um
pouco depois disso, Claudinho é também um geminiano com ascendente em Aquário
que atribui aos astros sua capacidade de pensar e se empenhar em mil coisas ao
mesmo tempo. Na Ponta da Agulha é uma desses projetos.
O embrião do livro surgiu na Feira do
Livro de 2011, em uma conversa com o jornalista Márcio Pinheiro - o
Marcinho -,
coordenador do Livro e Literatura da prefeitura de Porto Alegre e seu amigo de
longa data. Com a ajuda da mulher Preta Pereira (com quem é casado desde 1969),
dos filhos e de colegas de noite dessas décadas longínquas, Claudinho compôs um
apanhado de informações e histórias sobre lugares que já foram demolidos, gente
que já morreu e memórias que quase se apagaram.
- Quando fui fazer o livro,
pesquisei na internet e não achei nada - conta ele. -
Queríamos que fosse um almanaque, com datas, músicas. É nessa praia -
sintetiza, antes de se perder em mais um devaneio geminiano.
Dizer que a história da noite
porto-alegrense se confunde com a desse homem não é mero clichê. No início dos
anos 1960, Claudinho se tornou o primeiro discotecário da cidade, na pioneira
Crazy Rabbit -
boate que Carlos Heitor Azevedo abriu na Rua Garibaldi, quase esquina com
Independência. A partir de então, nem ele nem a noite porto-alegrense pararam
mais de badalar.
- Saindo do Crazy Rabbit, o
Heitor montou a Baiuca, na Independência, onde também trabalhei. Aí começaram a
vir outras casas na mesma região. O Tatata Pimentel deu a ideia para o Rui
Sommer: “Olha, estamos gastando muito dinheiro na boate dos outros, porque a
gente não monta a nossa?”. Daí, veio o Encouraçado Butikin. E aí o Edmund Rihan
montou o La Locomotive ,
o Raul Moreau montou o Whisky a Go-Go... Foi assim que começou, também, a
Cidade Baixa.
E assim começa Na Ponta da Agulha. Ao
longo de suas 200 páginas, o livro percorre a trajetória de seu autor e da
noite da Capital. Para cada nova casa no circuito - primeiro na
Independência, mas também no Centro, na Cidade Baixa, na Protásio Alves -, há
uma lista de músicas mais tocadas e alguma história pitoresca. Muitas linhas
são dedicadas, também, aos lugares onde a noite acabava (a Tia Dulce e sua sopa
de cebola, o Zé do Passaporte e seus lanches com molhos apimentados) e aos
personagens que, segundo Claudinho, sempre foram sua única fonte de nostalgia e
saudade do passado, como Gilda Marinho e Dudu Alvarez.
O Encouraçado Butikin é o ponto de
partida. Inaugurado por Rui Sommer onde hoje funciona a casa noturna Beco, a
boate ostentava a pompa de uma cidade que “achou que poderia ser Nova York”,
como destaca Márcio Pinheiro na apresentação do livro. O projeto arquitetônico
rendeu prêmio a Milton Mattos. A logomarca (uma sereia-marinheira nua) foi
criada por Ziraldo, e a placa da fachada, por Xico Stockinger. Passaram pelo
Butikin Toquinho, Vinícius de Moraes, Nara Leão, Elizeth Cardoso e Maria
Bethânia. Coisa fina.
Claudinho e DJ Gilberto eram
responsáveis por comandar "as bolachas" da casa noturna.
Diferentemente de outras boates abertas na época, que dispunham apenas de
tocadores de fitas de rolo, no Encouraçado, o som era em vinil.
Na pista do Encouraçado não podiam
faltar Green River, do Creedence, Strangers in The Night, com Frank Sinatra, e
I Left My Heart In San Francisco, com Tony Bennett. Como a importação de discos
era proibida, para conseguir as canções era preciso ter conexões fortes.
- A gente pedia para
comissários e pilotos que iam a Nova York e Paris trazerem revistas que eram as
bíblias da música: a Billboard e a Cashbox. Depois, encomendávamos com eles os
compactos das mais tocadas - conta Claudinho, lembrando que a fórmula funcionava, e
muitas músicas tinham de rolar várias vezes na mesma noite.
Foi um comandante da Varig o
responsável pelo que Claudinho chama de “a chegada do american way of life” a
Porto Alegre. Em 1959, Omar Silveira da Cruz abriu o Joe's, lanchonete na Rua
Ramiro Barcelos inspirada em estabelecimentos americanos. Até 2011 - ano
em que fechou as portas -, o Joe's seria conhecido pelo “melhor milkshake da
cidade”.
Na virada para a década de 1970, a
ditadura militar impunha seus anos de chumbo. Simultaneamente, desembarcava no
Brasil a "disco music". Influenciada pelo funk, pelo soul e até mesmo
pela música latina, a disco logo se tornou símbolo de um movimento de liberdade
em que tinham lugar os gays, os negros e, por que não, os brancos e
heterossexuais?
Em 1971, Elaine Ledur e Dirnei
Messias inauguraram a Flower's, primeira casa noturna da Capital em que pessoas
do mesmo sexo podiam se beijar sem medo. A trilha sonora, conforme lembra
Claudinho, tinha Gloria Gaynor, Village People e Sylvester. Situada próximo a
um quartel, a Flower's sofreu perseguição dos agentes do regime, que faziam
frequentes revistas no local. Em 1975, Messias e Elaine decidiram mudar a boate
de lugar. Tivessem aguentado um pouco mais, talvez a mudança pudesse ter sido
evitada.
Em 1977, John Travolta ganha o mundo
como Tony Manero em “Os Embalos de Sábado à Noite”. A partir dali, ficava
sacramentado que homens podiam - e deviam - saber dançar.
- Começa a haver uma
valorização da dança. O cara que sabia dançar não pagava bebida, o pessoal
queria tê-lo perto da mesa - diz Claudinho, que lembra que os DJs também passaram a
ser mais valorizados, uma vez que a pista de dança se tornou a parte mais
importante das festas.
As mudanças comportamentais que
chegavam pela TV e de avião acabavam por modificar a paisagem noturna da
Capital. Até então, maioria das boates cobrava caro, e o traje para passar no
crivo do porteiro era gala.
- Isso mudou depois de Os
Embalos de Sábado à Noite e da novela Dancin' Days, que lançou as meias de
lurex, as calças pantalona, boca de sino, a camisa romana, com a gola imensa -
relembra.
A primeira discoteca da Capital, a
Looking Glass, foi inaugurada em 1978, mesmo ano que a telenovela de Gilberto
Braga foi ao ar. Chegou com luzes coloridas, fumaça e luz estroboscópica
(novidade por aqui). A música das boates chegou também ao rádio, com programas
em várias emissoras.
A boemia da Capital também tinha
outras caras. Ao longo de seu passeio escrito pelos restaurantes tradicionais
do Mercado Público, pelos bares com música ao vivo de Adelaide Dias - onde
Lupicínio Rodrigues e Túlio Piva faziam sambas, serestas e choros - e pela
Cidade Baixa, Claudinho revela outro lado que ele sempre viveu.
Essas histórias tendem a ganhar
fôlego em projetos que ele tem para breve: um livro sobre a República, 138 - casa
em que morou com a família e por onde passaram artistas como Renato Russo, João
Bosco e Cida Moreyra - e várias ações comemorativas ao centenário de
nascimento de Lupicínio Rodrigues, que será celebrado em 2014 -
incluindo o longa Nervos de Aço, com lançamento previsto para o ano que vem,
que Carlinhos e Preta produziram.
Na ponta da agulha
“Testemunha auricular”. O
qualificativo utilizado para descrever Claudinho Pereira na apresentação de Na
Ponta da Agulha (Editora da Cidade, 200 páginas) é também a razão pela qual o
livro – que o DJ, cineasta e radialista lança neste sábado na Feira – é tão
envolvente. Um dos primeiros DJs de Porto Alegre, Claudinho viu o nascimento
das boates da Capital nos anos 1960 e seu desenvolvimento ao longo das décadas
seguintes. Debutou como discotecário do Crazy Rabbit, casa na Rua Garibaldi que
inaugurou a moda de “dançar separado”. Daí em diante, passou pelo histórico
Encouraçado Butikin, viveu intensamente a vida noturna do Centro e da Cidade
Baixa, provou e aprovou as comidas de fim de noite da Tia Dulce.
Reforçam o depoimento do autor,
dividido em capítulos referentes a cada um dos lugares da noite, os testemunhos
e lembranças de outros personagens - merchands, jornalistas, empresários, arquitetos - que
fizeram parte dessa história: Juarez Fonseca, Renato Rosa, Paulo Gasparotto,
Milton Mattos e Fernando Albrecht.
“Na Ponta da Agulha” é, a um só
tempo, um almanaque de curiosidades da noite da Capital, uma autobiografia de
Claudinho e uma narrativa sobre a metamorfose de uma juventude e de uma cidade
que nunca mais seriam as mesmas. É o registro da invenção da Porto Alegre
boêmia.
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