quarta-feira, 23 de julho de 2014

As orfandades do amor

    Paulo Mendes*

Relatos de viajantes que percorreram o Rio Grande dão conta de que o Pampa era aterrorizante. O medo vinha pela sensação de infinito dos campos abertos, com muita luz, que abarcava e embaçava a visão. Diziam que o pampa era um mar de terra, plano e sem atrativos. Para Miguelito, nascido nas pradarias, aquilo era o seu lar. A terra deu-lhe a vida e se sentia muito bem quando estava montado, com o laço atado nos tentos, esparramando as melenas contra os ventos de abril.

Morava num rancho de barro num fundão de corredor. Dormia escutando o barulho da água batendo nas pedras da sanga, que corria perto, onde lavava sua própria roupa e tomava banho no verão. Acordava com a passarinhada em cantoria, com o canto de um galo carijó e com os latidos de seu cachorro Jundiá. Vivia de pequenas changas, criava uma vaca de leite, umas ovelhas, galinhas, dois porcos e, na lavourinha, sempre plantava mandioca e milho. Ao lado da casa, tinha uma parreira, uma pequena horta e um pomar. Dentro, só a cama rústica, uma mesa de madeira, um armário onde guardava camisas e bombachas, um cavalete com os arreios, outro armário suspenso para os mantimentos e um fogão de barro com chapa de ferro. Pendurada numa parede, a foto de sua mãe, ainda jovem, ao lado de um antigo rádio de pilha.

Ganhava pouco, é verdade, mas aquilo lhe bastava. A única coisa que sentia falta era de amor. Por isso, cada vez que botava umas platas no bolso, encilhava a rosilha, presente de um padrinho, e ia matar a sua sede de prazer nos braços da Candinha, a china mais moça da tia Anita, na beira da via férrea da vila. Precisava andar duas, três horas até chegar lá, mas valia a pena. Escutava uns tangos de vitrola, bebia vinho, às vezes um trago de aguardente com limão, por outras cachaça com gasosa. A velha Anita contava com cinco mulheres, bonitas e candongueiras, mas Miguelito se afeiçoara à Candinha.

Então, naquele domingo, foi difícil para Miguelito saber que a Candinha estava com um “cliente”. Não aceitou outras “ofertas” e se tocou de volta pra casa. Sabia que não tinha direitos sobre ela, mas vinha com uns ciscos nos olhos e uma coxilha no coração. Passou a noite insone. No outro dia, não foi trabalhar na fazenda do seu Antunes. Troteou direto pra vila, bateu na janela da Candinha, que abriu. Conversaram por uns instantes. O que disseram ninguém soube. Mas, dez minutos depois, a Candinha saiu com uma maleta e montou na garupa da rosilha. Chegaram ao rancho no meio da tarde e matearam embaixo da parreira até o anoitecer.

E viveram juntos, naquele pequeno mundo pampeano, sem medo nenhum, porque o campo só é triste quando o coração pena.


Foto da Internet

*Em Campereada, Correio do Povo

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