quarta-feira, 23 de julho de 2014

Quero voltar para casa



Eu quero voltar para a casa onde nasci, o ranchinho perdido no tempo e no esquecimento. Rever os matos onde a passarada orquestrava sinfonias ao amanhecer e quando o sol descambava no poente. Quero voltar, mas não consigo, não tenho mais forças para caminhar e minha memória já não me ajuda. Queria voltar para rever os amigos de outrora, jogar bola aos domingos, nós, toda a gurizada, a correr pela estrada de terra. Voltar da escola com a pasta de couro à meia espalda. Quero voltar para abraçar meus colegas uma vez mais. Aqui onde estou, tudo se escoa depressa demais, o tempo passa ligeiro demais, os amigos vão embora rápido demais. Os carros, os ônibus, os trens, tudo é tão passageiro e fugaz. Meu Deus, quero voltar para casa!

Quero voltar para sentir, outra vez, o cheiro bom saindo das panelas de ferro cozinhando o feijão preto e o fervido de ovelha. Ver minha mãe, com suas mãos enrugadas, seus olhos gateados sorrindo, de avental, ao redor do fogão. Depois, no terreiro, chamando os pintos: pipipipiiiii... Quero ouvir os sons perdidos da infância, porque meus ouvidos estão cansados de apitos de fábricas, de roncos de motores, de chiados de ferro, de batidas de martelos e máquinas de construção. Tenho saudade do piar do barreiro anunciando a chegada do novo dia, dos latidos da cachorrada na restinga, de sentir na cara o minuano me cortando as faces nas geladas manhãs da Vila Rica. Do chimarrão, da pipoca, das pandorgas, das bolitas e das pescarias. Quero voltar para casa, mas não sei mais onde ela está, procuro e não a vejo, porque se perdeu no deserto que se tornou a minha vida.

Quero voltar para reencontrar meu pai na mangueira, me ensinando a laçar. Depois, no alpendre, dizendo-me como respeitar a força que os homens têm. A admirar a sapiência dos velhos e a deixar no lugar os pertences alheios. Ver o relho atrás da porta, enxergar a folhinha do Padre Reus pendurada na parede da cozinha, o quadro do Molina na sala. Quero dar a lavagem para o porco no chiqueiro, alfafa para os cavalos na estrebaria, dar cana para as leiteiras, passar a rasqueadeira no Tostado e depois encilhá-lo a capricho. Sentir o cheiro da graxa pingando no fogo de chão numa linda manhã de domingo. Quero voltar para tomar apojo na mangueira, passar a mão na cabeça do terneirinho bragado que chorava todas as tardes chamando pela mãe no piquete.

Eu quero voltar para casa, mas reconheço que tudo está morto, irremediavelmente perdido. Por quê? Tateio no escuro, mas nada encontro. Miro a distância e não vejo meu lugar, só um imenso descampado envolto na neblina. Desesperado e solito, puxo o ar e balbucio num fiapo de voz: “Eu só quero voltar para casa...”.

Do livro de crônicas “Campereadas” de Paulo Mendes.





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