segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Antígona e a política atual



Sófocles

Millôr usou Sófocles para atirar em Collor,
 e acertou em cheio nos políticos atuais!

O livro “O humor nos tempos do Collor” (L&PM, 1992) traz uma coletânea de textos de Millôr Fernandes, Jô Soares e de Luís Fernando Veríssimo sobre o governo desse presidente que, pela primeira vez na história brasileira, foi apeado do cargo por vias rigorosamente constitucionais. O texto de que eu mais gosto nesse livro não é humorístico, porém. Trata-se de Antígona, de Sófocles, no qual Millôr reproduz uma passagem dessa famosa peça teatral.

Na cena em questão, o profeta Tirésias, que é cego, vai com seu guia até a presença de Creonte, rei de Tebas, para avisar que as lutas entre os pássaros do “rochedo dos augúrios”, assim como as vísceras dos animais sacrificados aos deuses, vaticinaram a aproximação de tempos sombrios. Millôr não acrescenta qualquer comentário ao texto, e nem precisa: o paralelo entre a arrogância do tirano de Tebas e o estilo do presidente deposto fica evidente. Além disso, é fácil ver como as críticas do rei ao vidente simulam muito bem as críticas de Collor à imprensa e à oposição.

(Entra Tirésias, o adivinho cego, guiado por um menino.)

(...)

CREONTE – Velho, você e todos juntos atiram dardos contra mim como se não houvesse outro alvo no universo. E usam sobre mim, também, o anátema de todas as feitiçarias. A tribo dos videntes há muito que me usa, é uma raça que não me tem poupado. Conheço muito bem esses teus pássaros. Eles voam ao sabor do teu interesse. Sei que se abrir meus cofres eles voarão também de acordo com a minha vontade. Enche tua bolsa com o ouro branco de Sardes ou com o ouro das Índias, se preferes. Presta atenção, carcomido Tirésias; mesmo os mais espertos falham desgraçadamente quando enfeitam propósitos ignóbeis com belas palavras, inspiradas pelo amor do lucro.

TIRÉSIAS – Ai de mim! Na minha idade já não posso ter a ambição de que me acusas.

CREONTE – Há os que morrem roubando e amealhando, como se a vida fosse eterna.

TIRÉSIAS – Ofendes porque não temes punições.

CREONTE – Que disse eu que não fosse verdade?

TIRÉSIAS – Que profetizo com intuitos baixos.

CREONTE – Todos sabem que a tribo dos profetas não resiste ao suborno.

TIRÉSIAS – Todos sabem que a raça dos tiranos só pensa em subornar.

(...)

TIRÉSIAS – É difícil imaginar, na minha escuridão, a escuridão de tantos, mais cegos do que eu. Os fornos não pararam, ouço as bigornas cantando noite e dia, fabricando lanças e carros de guerra.

CREONTE – Que estás dizendo? Não percebes que sais do respeitado campo do profeta e penetras na área mortal da traição? Falas como adivinho ou como espião?

TIRÉSIAS – Sei que te atingi terrivelmente – e duplamente. Como vidente e como cidadão de Tebas. Mas, tu me provocaste a dizer aquilo para que não tens resposta. O grande homem de punho de ferro sente, subitamente, que as mãos lhe estão tremendo. O avanço de uma guarnição obriga a outra. A violência gera a violência. Do inimigo morto nascem mil inimigos. Fere com o ferro. E o ferro se volta contra ele. Não tarda, Creonte. Não tarda. Já chega a tua hora. Vamos menino, já disse o que tinha que dizer, me leva para casa para que ele possa descarregar sua fúria sobre outros, enquanto aprende que o poder também tem seu limite.


Anfiteatro grego

→ Sófocles nasceu em Atenas, provavelmente em 495 a.C., e morreu na mesma cidade, no ano 406 a.C. Ele foi contemporâneo da grande época de Atenas, o período no qual a cidade viveu sob a liderança de Péricles, que se estende das vitórias dos gregos sobre os persas até quase o fim da Guerra do Peloponeso.

→ De sua primeira vitória no concurso teatral ateniense, em 468 a.C., até sua morte, Sófocles foi homenageado e festejado como o maior poeta trágico dos gregos. Infelizmente, chegaram até nós apenas 7 das 120 peças que ele escreveu.

→ A peça mais antiga de Sófocles, Ájax, ainda apresenta influências de Ésquilo e uma estrutura dramática muito simples. A seguir, temos Antígona, a tragédia da mulher que enfrenta as leis e o governo para respeitar os mandamentos divinos e morais, mas acaba massacrada pelo Estado.

→ Sua obra-prima, contudo, é Édipo rei, a tragédia do homem perseguido pela fatalidade do destino: transformado em rei, busca um assassino que, na verdade, é ele mesmo, descobrindo, ao final, ter matado seu próprio pai e desposado a própria mãe.

→ O tema de Sófocles é o destino humano - o destino do herói que sofre e é destruído. A tragédia apresenta a crise desse destino individual, imposto pelas forças sobrenaturais. Sófocles acredita que o homem está no centro do mundo, mas também crê no poder irresistível dos deuses (ainda que não tenha fé na justiça divina).

Antígona: Direito Positivo versus Direito Natural – Quem ganhou?
  
Por George Marmelstein Lima*

Quase todo estudante de direito é apresentado à peça “Antígona”, de Sófocles logo no início do curso, geralmente na disciplina “Introdução ao Estudo do Direito”, pois a obra é uma das primeiras a retratar o eterno embate entre o direito natural e o direito positivo, melhor dizendo, entre a justiça e a lei.

O enredo da peça todos conhecem: um sujeito chamado Polinície tenta realizar um golpe de Estado para tomar o poder em Tebas, no que foi assassinado. Quebrando as tradições da época, Creonte, o governante, determina que o morto não poderá ser enterrado e que quem descumprir a sua ordem também será assassinado.

Antígona, que era irmã de Polinície, não se conforma com aquela medida. Para ela, seria uma desonra inaceitável não enterrar o irmão. Por isso, em claro descumprimento da ordem de Creonte, Antígona resolve realizar todos os rituais fúnebres devidos em favor do morto.

Creonte, puto da vida, chama Antígona para uma conversinha em particular. O diálogo daí resultante é uma sinfonia para aqueles que defendem o direito natural. Ei-lo:

 “Creonte – ô Antígona. Que parte da minha ordem “não pode enterrá-lo” você não entendeu? Vai dizer que não sabia?

Antígona: Estaria mentindo se dissesse que não conhecia a ordem. Como poderia ignorá-la? Ela era muito clara.

Creonte – Portanto, tu ousaste infringir a minha lei? Tá maluca?

Antígona – Descumpri mesmo. Quer saber por quê? Porque não foi Zeus que a proclamou! Não foi a Justiça, sentada junto aos deuses inferiores; não, essas não são as leis que os deuses tenham algum dia prescrito aos homens, e eu não imaginava que as tuas proibições fossem assaz poderosas para permitir a um mortal descumprir as outras leis, não escritas, inabaláveis, as leis divinas! Estas não datam nem de hoje nem de ontem, e ninguém sabe o dia em que foram promulgadas. Poderia eu, por temor de alguém, qualquer que ele fosse, expor-me à vingança de tais leis?”

Eis, nesse diálogo, com algumas licenças poéticas, um bom exemplo do sentimento de indignação que surge toda vez que o ordenamento jurídico encontra-se fora de sintonia com o espírito de justiça presente na sociedade. Por isso, costuma-se dizer que a resposta de Antígona é uma das mais remotas defesas do direito natural.

No entanto, há outro diálogo, na mesma peça, que não é citado nos livros de introdução ao direito, que demonstra que o grande vitorioso desse embate entre direito positivo autoritário versus direito natural não foi nem um nem outro. Quem venceu foi o direito democrático.

O outro diálogo foi travado entre Creonte e Hémon, seu filho, que tinha uma quedinha por Antígona. Hémon, de forma até meio petulante, questiona a ordem do pai. O pai não arreda pé: disse que o que decidiu está decidido e ponto final. Antígona, portanto, deveria ser punida, conforme previsto na sua ordem.

Eis um trecho do diálogo:

“Creonte: Não está Antígona violando a lei?

Hémon: O povo de Tebas não concorda com você.

Creonte: Querias que a cidade me dissesse que ordens devo dar?

Hémon: Agora é você que fala como um menino. [Pouco antes, Creonte havia perguntado se cabia a seu filho ensinar-lhe sabedoria.]

Creonte: Deverei reinar conforme julgam os outros ou segundo meu próprio discernimento?

Hémon: Uma pólis governada por um só homem não é uma pólis.

Creonte: Então o Estado não pertence àquele que o governa?

Hémon: Sem dúvida, num deserto desabitado poderia governar sozinho”.

(apud STONE, I. H. O julgamento de Sócrates. 
Companhia das Letras: São Paulo, 2005).

No final da peça, a vontade popular vence, levando o público ao delírio, pois foi uma clara vitória da democracia. Normalmente, dá-se pouca atenção a essa lição política contida na “Antígona”. No fundo, a moral da peça é que o povo não apenas tem o direito de se expressar, mas também o de ser ouvido: o governante que despreza as opiniões do povo põe em risco a cidade e a si próprio também. Logo, não foi o direito natural que venceu, mas o direito democrático.

*Juiz Federal e Professor de Direito Constitucional

Escrito em Porto Alegre/RS

(Do Blog Direitos Fundamentais)



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