segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Cantadores de viola

Viriato Correia

Ilustração de Renato Silva
para o livro “Cazuza”, de Viriato Correia)

(...)

Para a gente matuta, não há nada mais importante numa festa do que o “desafio”; entre dois famosos cantadores de viola. Suspendem-se as danças para que todo mundo os ouça em silêncio.

Os cantadores que se iam medir aquela noite, eram o José Firmino e o Pedro Jeju, os mais festejados daquela beirada de rio. Ninguém queria perder uma palavra da luta que eles iam travar em versos.

O João Raimundo bateu palmas no meio da latada impondo silêncio:

− Minha gente, vamos ouvir estes dois “turunas”.

Zoou no ar um quente repenicado de primas e bordões de violas. Os dois cantadores sentaram-se frente a frente.

Versos de cá, versos de lá, a cruzarem-se. Um improvisava uma quadra ou uma sextilha ou uma oitava e o outro imediatamente respondia com uma oitava ou uma quadra ou uma sextilha.

No começo, cada um deles disse, em versos, quem era, como nascera, de onde tinha vindo. Cinco minutos depois, começaram a gabar-se de feitos maravilhosos.

O Pedro Jeju, dedilhando assanhadamente as cordas da viola, soltou a primeira gabolice:

− José Firmino acredite,
Não gosto de me gabar,
Mas quando pego a viola,
Quando começo a cantar,
Saem da cova os defuntos,
Os peixes saem do mar,
Os anjos descem do céu,
E tudo vem me escutar.

O José Firmino quase não deixou que o companheiro acabasse o último verso, e cantou de viola estendida no peito:

− Eu não tenho inveja disso,
Sou valente, valentão,
Canguçu é meu cavalo,
Cascavel meu cinturão,
Eu engulo brasa viva,
Pego corisco com a mão,
Um empurrão do meu dedo
Bota dez morros no chão.

O Pedro Jeju respondeu:

− Você pode ser valente,
Habilidoso não é.
Eu calço chinelo em cobra,
Boto guizo em jacaré,
Asso manteiga no espeto,
Faço o tempo andar à ré,
Carrego água em peneira,
Dou beijos em busca-pé.

O povo aplaudia com palmas e gritos.

José Firmino olhou o cantador de alto a baixo e improvisou:

− Isso tudo não é nada,
Não me pode amedrontar:
Paro o vento quando quero,
Já fiz o sol esfriar,
Bebo chumbo derretido,
Sem o chumbo me queimar,
Seguro as onças no mato,
Para meu filho mamar.
        
O outro acelerou os dedos nas cordas da viola e respondeu:

Se eu for contar minhas artes
Não acabo nunca mais;
Para apagar os incêndios
Uso breu e aguarrás,
Eu ponho luneta em pulga,
E gravata em Satanás,
Eu faço gelo com brasa,
Coisa que você não faz,
Faço o carro andar na frente,
Faço o boi andar atrás.

E ergueu-se. José Firmino ergueu-se também. Eram ambos fortes no desafio. Não haveria vencido nem vencedor.

Não valia a pena teimar.

*****

(Do livro Cazuza, de Viriato Correia, Companhia Editora Nacional)



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