Alcy Cheuiche*
General e Deputado Flores da Cunha
− De que
está rindo, doutor Saint-Pastous?
− De nada... Bem... de um fato que me
contaram a seu respeito, General Flores. Acontecido na Câmara de Deputados, mas
não sei se é verdade.
− Deve ser. Aqueles idiotas
engravatados têm mesmo vocação para palhaços... Pena que o Getúlio dependa
dessa gente para governar.
− E como vai o nosso presidente?
− Gordo e são de lombo. E nunca governou
tão bem na sua vida, o que está deixando o Lacerda como louco. Essa de nomear o
Janguinho Ministro do Trabalho foi uma grande jogada. E autorizou o guri a
dobrar o salário mínimo, que o Dutra tinha deixado perder muito valor.
− Mas o João Goulart não é novo
demais para esse cargo?
− Talvez seja, deve ter uns trinta e
poucos anos. Mas o Getúlio passou dos setenta; tem que preparar seu substituto.
E eu e o Oswaldo Aranha somos quase tão velhos como ele.
− Dizem que o pessoal de São Paulo
ficou furioso com esse aumento do salário mínimo e promete vingança.
− Política é assim, doutor
Saint-Pastous, mas isso é bom para o futuro do Jango. A gente cresce na
política não só com o aumento do número de amigos, mas também de inimigos.
− Sou médico, General Flores, não
entendo nada de política.
− Pois o Batista Luzardo também é
médico e estava lá peleando na Ponte do Ibirapuitã, infelizmente do lado dos
maragatos... Quer mais mate?
− Aceito. Nunca tinha tomado mate no
Rio de Janeiro. Também, só venho aqui correndo.
− O Aranha e eu tomamos mate juntos
quase todas as madrugadas, tirando tempo dos cavalos, no Jóquei Clube. Até na
Câmara de Deputados eu não dispenso o chimarrão... E, por falar nisso, o que
aconteceu comigo por lá que fez o senhor rir?
O médico olhou alguns momentos para o
topete de erva verde, entremeada com alguns pauzinhos, e ajeitou-o
distraidamente com o dedo indicador da mão esquerda. Embora também fosse famoso
e respeitado, considerava o general Flores da Cunha quase como um mito, e
hesitou em responder-lhe a pergunta. Porém, depois que a bomba roncou no fundo
da cuia, devolveu-a com a mão direita e foi obrigado a falar:
− Foi um fato que dizem que aconteceu
no ano passado, no aniversário do combate da Ponte de Ibirapuitã.
− Haaa... Claro que eu me lembro, e
foi um causo engraçado mesmo, embora não fosse esse o meu objetivo.
− Como assim, general?
− Foi quando eu registrei na Câmara a
passagem dos trinta anos do Combate da Ponte do Ibirapuitã. Trinta anos... E,
para mim, parece que foi ontem.
O general calou-se, emocionado, e
Saint-Pastous também recuou para aquela noite de 5 de junho de 1923.
Recém-chegado da França, onde se formara em Medicina, a revolução que ensanguentava
o Rio Grande do Sul lhe parecia ainda mais bárbara. E a cidadezinha de
Alegrete, onde nascera, um triste amontoado de casas na curva do Rio
Ibirapuitã. Numa delas, a dos seus pais, passara boa parte do dia ouvindo o
tiroteio e segurando-se para não sair e ver de perto o que acontecia. Chegado o
silêncio da noite, decidira ir até a Santa Casa para ajudar os dois ou três
médicos da cidade a atender os feridos. Quando chegou próximo do hospital, foi
detido por uma voz autoritária:
− De aqui no
pasa!
− Tenho que
passar, sou médico, vou cuidar dos feridos.
− Salga de
la vereda y pónga-se de el médio de la calle!
Humilhado por receber ordens em
espanhol em seu próprio país, foi obrigado a sair da calçada e colocar-se no
meio da rua. Não demorou e colocaram-lhe um lampião de querosene na cara.
− Tiene
alguma arma?
− Não.
Para que precisaria de uma?
−
Soy yo quien hace las perguntas! Quien lo mando aca?
− Ninguém.
Vim porque acredito que precisam de mim.
− Bueno,
también hay uruguayos heridos... Uste puede passar.
O médico pensou tudo isso em poucos
segundos e, revivendo a arrogância do guerrilheiro, perguntou em voz baixa ao
general, que tomava maus um mate, também pensativo.
− Por que o
senhor aceitou que aqueles castelhanos lutassem do seu lado, em 1923?
Flores da
Cunha terminou de sorver o mate e respondeu, sorrindo:
− Eu não aceitei, eu pedi ajuda ao
Nepomuceno Saraiva e sua gente para lutarem do nosso lado contra os maragatos
do Honório Lemes. O pai dele, o General Aparício Saraiva, também combateu aqui
em 1893.
O médico ia comentar que sim, que os
irmãos Gumercindo e Aparício Saraiva tinham lutado no Brasil, na Revolução
Federalista, mas do lado dos revolucionários e não a favor do governo.
Constrangido, resolveu não dizer nada sobre isso, afinal, não queria entender
de política. Mas gostava muito de História e não perderia a oportunidade de
ouvir o relato que ele mesmo provocara.
− E o que aconteceu quando o senhor
discursou nos trinta anos do Combate da Ponte?
− Bem, na qualidade de presidente da
Câmara de Deputados, eu não poderia quebrar o protocolo. Assim, passei a
presidência para um colega, antes de ocupar a tribuna e tomar a palavra.
− ...
− De fato, eu estava muito
emocionado, pois queria falar também em homenagem ao meu irmão Guilherme, que
morreu crivado de balas sobre a ponte.
− Por que era importante
atravessá-la?
− Porque o Ibirapuitã estava muito cheio, a
poucos palmos da pranchada da ponte, o que nos impediu de atravessar o rio a
cavalo, a nado. Além disso, o Honório e uns trezentos maragatos estavam entrincheirados
do outro lado, nos provocando com uma bandeira vermelha hasteada no alto de uma
casa de pedra.
− Assim como
os toureiros fazem para provocar o touro?
− Exatamente. E nós aceitamos o
desafio e demos uma carga de cavalaria para atravessar a ponte, sendo o meu
irmão morto e o Oswaldo Aranha ferido, entre outros, na primeira tentativa.
− E o que
houve de hilariante? Eu não compreendo...
− Naquele combate só houve sofrimento
e agonia, de ambos os lados. Acontece que, ao narrar os fatos da tribuna, eu
comecei a repetir as primeiras palavras, como se faz nos discursos.
− ...
− Sim, eu começava cada frase
dizendo: Me lembro muito bem daquele dia de loucura cívica... Me lembro dos
lenços brancos republicanos salpicados de sangue rubro... Me lembro da dor do
meu próprio ferimento, que não me impediu de continuar montado a cavalo,
comandando a carga... Me lembro... Foi quando tive meu discurso interrompido
pela voz em falsete de um adversário político:
− Vossa Excelência permite um aparte?
Mesmo contrariado com a interrupção,
respondi-lhe educadamente:
− Como não, nobre deputado Teixeira
Coelho.
− Muito obrigado, senhor Presidente.
Meu aparte é para elogiar a aula de História que estamos recebendo de Vossa
Excelência, partícipe glorioso que foi dos fatos que nos está narrando. No
entanto, Vossa Excelência está falhando com o vernáculo, Vossa Excelência está
massacrando a língua portuguesa. Vossa Excelência não tem o direito de inverter
o pronome, dizendo: me lembro. Lembro-me é a maneira castiça, certa, de dizer.
− ...
− Meu amigo, ao ouvir aquelas
asneiras, meu rosto ficou mais vermelho do que a bandeira dos maragatos. Mas,
como não podia derrubar a pata de cavalo aquele insolente.
− O que ele merecia.
− Sim, merecia no mínimo uns tabefes,
mas consegui controlar-me, respirei fundo e disse-lhe com a voz mais calma
possível:
− Deputado Teixeira Coelho, eu não
estava a falar com o vernáculo e sim com o coração. Como o faço agora, nobre
deputado, pois se tivesse que falar-lhe sem inverter o pronome, eu não o
chamaria de Teixeira Coelho e sim de Xeira-te Coelho...
Desta vez, Saint-Pastous, com toda
sua educação polida em Paris, não conseguiu conter-se e deu uma risada
verdadeira, uma verdadeira risada de galpão.
****
→ Oswaldo Aranha, de barba, o
segundo a partir da esquerda, com Flores da Cunha, ao centro e seu irmão,
Guilherme, a sua esquerda, morto em combate no mesmo ano, 1923.
→ Guilherme Flores da Cunha,
Santana do Livramento, 1892, falecimento, em combate, em 19 de junho de 1923,
aos 31 anos, na Ponte sobre o rio Ibirapuitã, em Alegrete, RS.
→ José Antônio Flores da Cunha,
quarto da esquerda para a direita, (Santana do Livramento, 5 de março
de 1880
− Porto Alegre,
4 de novembro
de 1959)
foi um advogado,
general
e político
brasileiro,
tendo sido interventor federal e, posteriormente, presidente eleito do estado do Rio
Grande do Sul, bem como senador pelo mesmo estado.
*O autor, escritor Alcy Cheuiche,
ficcionaliza papo entre o médico Sait-Pastous e o deputado Flores da Cunha e
resposta a um colega que provocou risos.
Alcy Cheuiche em foto
de Marco Nedeff
Antônio Saint-Pastous de Freitas
(Alegrete-RS-11 de fevereiro de 1892 – Porto Alegre-RS-28 de setembro de 1976)
Médico pela Faculdade de Medicina de Porto Alegre, 1915. Curso de
aperfeiçoamento na Europa, 1921-1922; no Prata, 1933; e nos EUA, 1941. Médico e
pecuarista no município natal. Especialista em Clínica Médica ,
Radiologia e Cancerologia em Porto Alegre. Catedrático
de Clínica Medica na Faculdade de Medicina de Porto Alegre desde 1935. Diretor
da citada Faculdade, Reitor da Universidade de Porto Alegre, 1943-1944. Diretor
do Hospital Moinhos de Vento, Porto Alegre. Líder ruralista, sociólogo e
conferencista. Membro da Academia Nacional de Medicina, Rio de Janeiro, da
Sociedade de Medicina e Cirurgia, Porto Alegre, e da FARSUL, Porto Alegre, que
presidiu. Participou ativamente das revoluções de 1923 e 1930. Patrono da
cadeira 4 da Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina, de que é titular o
professor Darcy de Oliveira Ilha.
O relato do imbróglio
Para finalizar, relembremos um
relato de Sebastião Nery, publicado na Folha de S. Paulo em 18.2.81 e
posteriormente transcrito por Celso Luft no jornal Correio do Povo:
O deputado Teixeira Coelho, do
Maranhão, fiel ao purismo linguístico de São Luís, a Atenas brasileira (que
depois do Sarney virou a apenas brasileira), ficou indignado:
– Deputado Flores da Cunha, Vossa
Excelência não pode estar nesta Casa, onde se deve primar pela pureza da
língua, a cometer esses deslizes de pronome fora do lugar, começando os
períodos. – Isso é coisa de importância menor, deputado. O principal é a ideia.
– Desculpe, Excelência, mas não é. Lá em São Luís não admitimos isso em estudante de
ginásio.
Flores da Cunha deu uma baforada, olhou lá de cima com total desprezo:
– Senhor deputado, lá no Rio Grande a gramática é livre, como livre são os pampas e o minuano, como é livre o gaúcho.
– Mas não está dispensado de respeitar a língua.
– Ora, deputado, quem é Vossa Excelência para corrigir minha linguagem?
– Sou um deputado, como Vossa Excelência.
– Mas sem autoridade nenhuma para
falar de pronomes. Vossa Excelência é o próprio pronome mal colocado. Vossa
Excelência é um pronome errado.
– Não entendi, deputado.
– Olhe sua carteira de
identidade. Vossa Excelência é “Teixeira” Coelho. Em nome do purismo da língua
deveria chamar-se “Xeira-te” Coelho.
O Teixeira calou.
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