Viriato Corrêa
Era uma vez um Sapato Ferrado*, era
uma vez uma Sandália de Veludo que o destino reuniu, certa manhã, na vitrina de
uma sapataria.
Ele, de couro grosso, feio, forte,
pesadão. Ela, pequenina, mimosa delicada com bordados de ouro, laçarotes de
seda e fivelinha de prata.
A sina dele (via-se logo ao primeiro
olhar) não podia ser outra senão andar em pés grosseiros, sobre lama e sobre
pedras. Ela (ao primeiro olhar se via) tinha sido feita para viver em palácios,
sobre ricos tapetes, nos pezinhos delicados de uma mulher fidalga.
Se não se pareciam no corpo, muito
menos na alma. A dele era simples, lisa, complacente, bonachão. A dela,
vaidosa, fútil, insaciável e complicada.
Quando o Sapato Ferrado entrou na
vitrina já a Sandália de Veludo lá estava desde a véspera.
E quando ele entrou, houve entre os
calçados um visível mal-estar.
A Botina de Cano Alto tocou
escandalizada no Sapato Raso. O Borzeguim soltou uma exclamação de surpresa. A
Bota de Montar, com toda a sua elegância de maneiras, não pôde esconder uma
ruga de aborrecimento. O Sapatinho de Criança fez uma careta. E até a Chinela
de Trança mostrou-se espantada.
Mas quem fez o escândalo foi a
Sandália.
Ao vê-lo entrar, deu um ui! de
espanto como se tivesse visto um bicho e, chegando-se junto do Sapato de
Entrada Baixa, disse sem a menor precaução:
− Que sujeito mal-amanhado. Quererá,
por ventura, viver em nossa companhia?
Quando, mais tarde, a sapataria abriu
as portas e o povo começou a parar diante da vitrina, cada calçado cuidou de
colocar-se em posição de ser visto da rua.
Ele, o Sapato Ferrado, deixou o
cantinho a que estava recolhido e veio para a frente.
− Chegue-se para lá! gritou-lhe
irritadamente a Sandália de Veludo. Faça o favor de não ficar perto de mim.
− Mas eu preciso mostrar-me. Para
isso é que me puseram na vitrina.
− Sim, mas para lá, muito para lá! O
mais longe possível. Veja bem a distância que nos separa.
Na rua um grupo de moças, que vinha
passando, parou.
− Que mimo de Sandália!
− Que lindo Borzeguim!
− Que fina Bota de Montar!
− Oh! no meio de tanto calçado rico
um Sapato Ferrado tão feio! exclamou uma das moças.
O Sapatinho de Criança encheu o rosto
com um riso inconveniente. A Botinha de Cano Alto virou de banda para rir. O
Sapato Raso imitou-a!
− Não acho graça nenhuma, disse a
Sandália de Veludo. O que sinto é vergonha. Vergonha de viver nesta vitrina em
tão má companhia. À tarde, o Sapato Ferrado desapareceu da vitrina. Um homem do
campo comprara-o.
Passou-se.
Um dia, uma carroça de lixo atirou o
Sapato Ferrado para cima de um monturo.
Minutos depois ouviu ele uma voz
dizer-lhe baixinho:
− Amigo, acabo de reconhecê-lo.
Era uma velha Sandália descorada e
gasta. O Sapato Ferrado ficou silencioso, sem saber quem lhe falava.
− Não me conhece? perguntou ela.
− Não tenho essa honra, senhora.
− Não se lembra de que estivemos
juntos na vitrina de uma sapataria?
− Ah! é a Sandália de Veludo!
− Eu, sim! Estarei tão feia e tão
velha que lhe não pareço a mesma?
− Não. É que lhe falta tanta coisa…
Onde estão os laçarotes de seda? E os bordados de ouro? E a fivelinha de prata?
− O tempo levou. A velhice destruiu.
Amigo, conte-me, conte-me lá sua história! Foi feliz?
− Fui. Tanto quanto pode ser feliz um
Sapato Ferrado. O homem que me comprou levou-me para uma fazenda, meteu-me nos
pés e andou comigo ao sol, à chuva, sobre pedras, sobre lama. Quando não
prestei para mais nada me atirou ao lixo.
− Que horror! exclamou a Sandália. E
o amigo não se acanha de contar uma vida tão inferior? Sobre pedras, sobre
lama… Fui muito mais feliz.
− Pudera! Teve a sorte das Sandálias
de Veludo.
− A mulher que me comprou era uma
grande dama. Vivi num palácio luxuoso, entre objetos raros, pisando em tapetes
ricos. A minha vida foi brilhante, muito mais brilhante que a sua.
O Sapato Ferrado ficou silencioso por
alguns segundos. Depois sorriu e disse tranquilamente:
− No entanto, no entanto, viemos os
dois acabar no mesmo monturo.
*****
(Do livro “Cazuza”,
de Viriato Correa, Companhia Editora Nacional)
*Sapato ferrado era feito de couro bem bruto para trabalho na
roça.
Terceiro ocupante da Cadeira 32,
eleito em 14 de julho de 1938, na sucessão de Ramiz Galvão e recebido pelo
Acadêmico Múcio Leão em 29 de outubro de 1938.
Viriato Correia (Manuel Viriato
Correia Baima do Lago Filho), jornalista, contista, romancista, teatrólogo e
autor de crônicas históricas e livros infanto-juvenis, nasceu em 23 de janeiro
de 1884, em Pirapemas, MA, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 10 de abril de
1967.
Obteve notoriedade no campo da
narrativa histórica, ombreando-se com Paulo Setúbal, que também se dedicou ao
gênero. Enquanto o escritor paulista deu preferência ao romance, Viriato
Correia optou pelas historietas e crônicas, com o intuito visível de atingir o
leitor comum. Escreveu no gênero mais de uma dezena de títulos, entre os quais
se destacam Histórias da nossa História (1921), Brasil dos meus avós (1927) e Alcovas
da História (1934). Com o objetivo de levar a História também ao público
infantil, recorreu à figura do afável ancião que reunia a garotada em sua
chácara para a fixação de ensinamentos escolares. As sugestivas “lições do
vovô” encontram-se em livros como História do Brasil para crianças (1934) e As
belas histórias da História do Brasil (1948). Deixou ainda muitas obras de
ficção infantil, entre elas o romance Cazuza (1938), um dos clássicos da nossa literatura
infantil, em que descreve cenas de sua meninice.
(Do blog da Academia
Brasileira de Letras)
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