segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

O sapato ferrado e a sandália de veludo

Viriato Corrêa

Era uma vez um Sapato Ferrado*, era uma vez uma Sandália de Veludo que o destino reuniu, certa manhã, na vitrina de uma sapataria.


Ele, de couro grosso, feio, forte, pesadão. Ela, pequenina, mimosa delicada com bordados de ouro, laçarotes de seda e fivelinha de prata.


A sina dele (via-se logo ao primeiro olhar) não podia ser outra senão andar em pés grosseiros, sobre lama e sobre pedras. Ela (ao primeiro olhar se via) tinha sido feita para viver em palácios, sobre ricos tapetes, nos pezinhos delicados de uma mulher fidalga.

Se não se pareciam no corpo, muito menos na alma. A dele era simples, lisa, complacente, bonachão. A dela, vaidosa, fútil, insaciável e complicada.

Quando o Sapato Ferrado entrou na vitrina já a Sandália de Veludo lá estava desde a véspera.

E quando ele entrou, houve entre os calçados um visível mal-estar.

A Botina de Cano Alto tocou escandalizada no Sapato Raso. O Borzeguim soltou uma exclamação de surpresa. A Bota de Montar, com toda a sua elegância de maneiras, não pôde esconder uma ruga de aborrecimento. O Sapatinho de Criança fez uma careta. E até a Chinela de Trança mostrou-se espantada.

Mas quem fez o escândalo foi a Sandália.

Ao vê-lo entrar, deu um ui! de espanto como se tivesse visto um bicho e, chegando-se junto do Sapato de Entrada Baixa, disse sem a menor precaução:

− Que sujeito mal-amanhado. Quererá, por ventura, viver em nossa companhia?

Quando, mais tarde, a sapataria abriu as portas e o povo começou a parar diante da vitrina, cada calçado cuidou de colocar-se em posição de ser visto da rua.

Ele, o Sapato Ferrado, deixou o cantinho a que estava recolhido e veio para a frente.

− Chegue-se para lá! gritou-lhe irritadamente a Sandália de Veludo. Faça o favor de não ficar perto de mim.

− Mas eu preciso mostrar-me. Para isso é que me puseram na vitrina.

− Sim, mas para lá, muito para lá! O mais longe possível. Veja bem a distância que nos separa.

Na rua um grupo de moças, que vinha passando, parou.

− Que mimo de Sandália!

− Que lindo Borzeguim!

− Que fina Bota de Montar!

− Oh! no meio de tanto calçado rico um Sapato Ferrado tão feio! exclamou uma das moças.

O Sapatinho de Criança encheu o rosto com um riso inconveniente. A Botinha de Cano Alto virou de banda para rir. O Sapato Raso imitou-a!

− Não acho graça nenhuma, disse a Sandália de Veludo. O que sinto é vergonha. Vergonha de viver nesta vitrina em tão má companhia. À tarde, o Sapato Ferrado desapareceu da vitrina. Um homem do campo comprara-o.

Passou-se.

Um dia, uma carroça de lixo atirou o Sapato Ferrado para cima de um monturo.

Minutos depois ouviu ele uma voz dizer-lhe baixinho:

− Amigo, acabo de reconhecê-lo.

Era uma velha Sandália descorada e gasta. O Sapato Ferrado ficou silencioso, sem saber quem lhe falava.

− Não me conhece? perguntou ela.

− Não tenho essa honra, senhora.

− Não se lembra de que estivemos juntos na vitrina de uma sapataria?

− Ah! é a Sandália de Veludo!

− Eu, sim! Estarei tão feia e tão velha que lhe não pareço a mesma?

− Não. É que lhe falta tanta coisa… Onde estão os laçarotes de seda? E os bordados de ouro? E a fivelinha de prata?

− O tempo levou. A velhice destruiu. Amigo, conte-me, conte-me lá sua história! Foi feliz?

− Fui. Tanto quanto pode ser feliz um Sapato Ferrado. O homem que me comprou levou-me para uma fazenda, meteu-me nos pés e andou comigo ao sol, à chuva, sobre pedras, sobre lama. Quando não prestei para mais nada me atirou ao lixo.

− Que horror! exclamou a Sandália. E o amigo não se acanha de contar uma vida tão inferior? Sobre pedras, sobre lama… Fui muito mais feliz.

− Pudera! Teve a sorte das Sandálias de Veludo.

− A mulher que me comprou era uma grande dama. Vivi num palácio luxuoso, entre objetos raros, pisando em tapetes ricos. A minha vida foi brilhante, muito mais brilhante que a sua.

O Sapato Ferrado ficou silencioso por alguns segundos. Depois sorriu e disse tranquilamente:

− No entanto, no entanto, viemos os dois acabar no mesmo monturo.

*****

(Do livro “Cazuza”, de Viriato Correa, Companhia Editora Nacional)

*Sapato ferrado era feito de couro bem bruto para trabalho na roça.



Terceiro ocupante da Cadeira 32, eleito em 14 de julho de 1938, na sucessão de Ramiz Galvão e recebido pelo Acadêmico Múcio Leão em 29 de outubro de 1938.

Viriato Correia (Manuel Viriato Correia Baima do Lago Filho), jornalista, contista, romancista, teatrólogo e autor de crônicas históricas e livros infanto-juvenis, nasceu em 23 de janeiro de 1884, em Pirapemas, MA, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 10 de abril de 1967.

Obteve notoriedade no campo da narrativa histórica, ombreando-se com Paulo Setúbal, que também se dedicou ao gênero. Enquanto o escritor paulista deu preferência ao romance, Viriato Correia optou pelas historietas e crônicas, com o intuito visível de atingir o leitor comum. Escreveu no gênero mais de uma dezena de títulos, entre os quais se destacam Histórias da nossa História (1921), Brasil dos meus avós (1927) e Alcovas da História (1934). Com o objetivo de levar a História também ao público infantil, recorreu à figura do afável ancião que reunia a garotada em sua chácara para a fixação de ensinamentos escolares. As sugestivas “lições do vovô” encontram-se em livros como História do Brasil para crianças (1934) e As belas histórias da História do Brasil (1948). Deixou ainda muitas obras de ficção infantil, entre elas o romance Cazuza (1938), um dos clássicos da nossa literatura infantil, em que descreve cenas de sua meninice.

(Do blog da Academia Brasileira de Letras)

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