quinta-feira, 28 de março de 2019

As aventuras do Sombra

“Quem sabe o mal que se esconde nos corações humanos?
O Sombra sabe!”


O Sombra era um herói diretamente importado dos Estados Unidos, onde sua popularidade somente era comparável à do Superman.

Como sugere o próprio nome, o Sombra era um sujeito misterioso, estranho e sombrio: usava uma enorme capa preta forrada de vermelho e um chapéu de abas caídas, que ocultava parte do seu rosto, no melhor estilo noir. Como o Mandrake, tinha poderes hipnóticos, que usava para se tornar invisível aos olhos dos inimigos.

O alter ego do Sombra era Lamont Craston, que, com a bela e meiga Margot Lane, passava o dia a desafiar a morte em nome do bem público e da lei. Em 1937, na CBS, o primeiro Sombra foi personificado por Orson Welles, então com apenas 22 anos. Margot Lane foi interpretada por Agnes Moorehead, que, tempos depois, na TV, faria o papel de Endora, mãe de Samantha, a Feiticeira.

Em tudo semelhante ao personagem americano, o Sombra brasileiro foi produzido no Brasil com excelente qualidade técnica e artística. A sonoplastia era do balacobaco, repleta de efeitos espetaculares e emocionantes. Era levado ao ar pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro às 22h05min das terças-feiras e tinha o patrocínio das lâminas de barbear Gilette Azul. Na verdade, era um seriado dirigido quase exclusivamente ao público adulto, pois a garotada corria da sala ao ouvir a voz cavernosa e sinistra do Sombra quando dizia: “Quem sabe o mal que se esconde nos corações humanos? O Sombra sabe!...” (gargalhada apavorante).

O Sombra foi personificado, no Brasil, pelo radioator Saint-Clair Lopes, um ícone não apenas da Nacional como do rádio brasileiro, em que fez de tudo. Foi ator, diretor, redator, programador, discotecário, locutor, escreveu livros, fez palestras sobre radiofusão e comunicação. Só na Rádio Nacional ele permaneceu por 33 anos.

De qualquer modo, o personagem Sombra tornou-se uma espécie de marca, que acompanhou Saint-Clair Lopes pela vida.

Um dia, por volta de 1952 ou 1953, meu pai levou-me à Rádio Nacional e me fez apertar a mão do ator, de quem era amigo. Ao vê-lo sorrir e conversar animadamente com o meu pai, fiquei decepcionado. Não, aquele sujeito que falava sobre as últimas façanhas do time do Flamengo, que ria dos comentários do pai, que não usava chapéu desabado no rosto, que não vestia a misteriosa capa preta – não, não, aquele sujeito não podia ser o Sombra. Eu estava decepcionado. Súbito, porém, Lopes calou-se, olhou muito sério para mim e grunhiu: “Quem sabe...” – e deu a sinistra e inconfundível gargalhada que tanto pânico me causava. Com o coração aos pulos, mas fascinado, me escondi atrás do meu pai, mas agora, finalmente, eu não tinha mais dúvidas. Aquele homem, mesmo sem a capa e o chapéu, que conversava com o pai, era mesmo o Sombra. Só podia ser o Sombra. Afinal, quem mais seria capaz de perceber minha descrença? Que mais seria capaz de ler meus pensamentos? Como fazia com todos que ousavam duvidar das suas artimanhas, o Sombra havia me dado uma lição inesquecível.

(Do “Almanaque da Rádio Nacional”, de Ronaldo Conde Aguiar)


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