segunda-feira, 25 de março de 2019

As palavras



As palavras são boas. As palavras são más. As palavras ofendem. As palavras pedem desculpa. As palavras queimam. As palavras acariciam. As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas. As palavras estão ausentes. Algumas palavras sugam-nos, não nos largam: são como garras: vêm nos livros, nos jornais, nas mensagens publicitárias, nos rótulos dos filmes, nas cartas e nos cartazes. As palavras aconselham, sugerem, insinuam, intimidam, impõem, segregam, eliminam. São melífluas ou ácidas. O mundo gira sobre palavras lubrificadas com azeite de paciência. Os cérebros estão cheios de palavras que vivem em paz e em harmonia com suas contrárias e inimigas. Por isso a pessoas fazem o contrário do que pensam, crendo pensar o que fazem. Há muitas palavras.

E há os discursos, que são palavras apoiadas umas em outras, em equilíbrio instável graças a uma sintaxe precária, finalizadas com chave de ouro: “Graças. Digo”. Com discursos se comemora, se inaugura, se abrem e cerram sessões, se lançam cortinas de fumo ou se dispõem cortinas de veludo. São brindes, orações, conferências e colóquios. Por meio dos discursos se transmitem louvores, agradecimentos, programas e fantasias. E logo as palavras dos discursos aparecem postas em papéis, pintadas em tinta de impressão − e por essa via entram na imortalidade do Verbo.

Ao lado de Sócrates, o presidente da junta domina o discurso que abriu a torneira da fonte. E fluem as palavras, tão fluidas como o “precioso líquido”. Fluem interminavelmente, inundam o solo, chegam até as joelhos, à cintura, a os ombros, ao colo. É o dilúvio universal, um coro desarmado que brota de milhares de bocas. A terra segue seu caminho envolta em um clamor de loucos, a gritos, a berros, envolta também em um murmúrio manso represado e conciliador. De todo há no coro: tenores e contraltos, cantantes baixos, sopranos de dó de peito fácil, barítonos acolchoados, contraltos de voz-surpresa. Nos intervalos se ouve o ponto. E todo isso aturde as estrelas e perturbam as comunicações, como as tempestades solares.

Porque as palavras deixaram de comunicar. Cada palavra é dita para que não se ouça outra palavra. A palavra, mesmo quando não afirma, afirma-se. A palavra não responde nem pergunta: amassa. A palavra é a erva fresca e verde que cobre os dentes do pântano. A palavra não mostra. A palavra disfarça.

Daí que seja urgente podar as palavras para que a plantação se converta em colheita. Daí que as palavras sejam instrumento de morte − ou de salvação. Daí que a palavra só valha o que valer o silêncio do ato.

Há, também, o silêncio. O silêncio, por definição, é o que não se ouve. O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar. Caem sobre ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e as más. O trigo e o joio. Mas só o trigo dá pão.

Do livro “Deste Mundo e do Outro, de José Saramago.





Nenhum comentário:

Postar um comentário