terça-feira, 19 de março de 2019

Ser Político

(Para os que se iniciam. Ou mesmo pros que estão acabando.)

Por Millôr Fernandes


Ser político é engolir sapo e não ter indigestão, respirar o ar do executivo e não sentir a execução, é acreditar no dialogo em que o poder fala e ele escuta, é ser ao mesmo tempo um ímã e um calidoscópio de boatos, é aprender a sofrer humilhações todos os dias, em pequenas doses, até ficar completamente imune à ofensa global, é esvaziar a tragédia atual com uma demagogia repetida de tragédia antiga, é ver o que não existe e olhar, sem ver, a miséria existente, é não ter religião e por isso mesmo cortejar a todas, é, no meio da mais degradante desonra encontrar sempre uma saída honrosa, é nunca pisar nos amigos sem pedir desculpas, é correr logo pra bilheteria quando alguém grita que o circo pega fogo, é rir do sem-graça encontrando no antiespírito o supremo deleite desde que seu portador seja bem alto, é flexionar a espinha, a vocação e a alma em longas prostrações ante o poder como preparação do dia de exercê-lo, é recompor com estoicismo indignidades passadas projetando pra história uma biografia no mínimo improvável, é almoçar quatro vezes e jantar umas seis pra resolver definitivamente o problema da nossa subnutrição endêmica, é tentar nobremente a redistribuição dos bens sociais, começando, é natural, por acumulá-los, pois não se pode distribuir o pão disperso, e é ser probo seguindo autocritério.

E assim, por conhecer profundamente a causa pública e a natureza humana, estar sempre pronto a usufruir diariamente o gozo de pequenas provações e a sofrer na própria pele insuportáveis vantagens.

(Do livro “Diário da Nova República Vol. 2)


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