segunda-feira, 5 de maio de 2014

Dito Preto e o Guarda



Quem nunca ouviu falar do Dito Preto, lá da minha terra deveras não sabe nada de mim. Pois até hoje não me apareceu amigo melhor – e ele infelizmente partiu fora do combinado, que é como eu costumo dizer. Falo sobre esse personagem real que marcou muito minha vida porque vou contar uma das suas.

O Dito tinha comprado um caminhãozinho ano 1928, Chevrolet, que era apelidado de “cabeça-de-cavalo”. O dito cujo, calhambeque, não tinha mais onde estar estragado. Sem para-choque dianteiro ou traseiro, sem portas, carroceria podre, toda torta, pintura enferrujada que não dava nem pra ver a cor do bicho. Enfim, era aquele despropósito de viatura.

Mas, como o motor estava retificado, e esses motorzinhos vão longe até não sei quando, para o que ele queria de sua serventia tava pra lá de bom. Era só para o trabalho de puxar cana nas fazendas das redondezas, e isso ele aguentava bem.

Aos sábados, que era dia de folga do Dito – e é num desses dias em que se passa o nosso causo -, o Dito como sempre toma o rumo da Via Anhanguera, que leva até o rio Sapucaí, que está bem pertinho da nossa terrinha, que é São Joaquim da Barra, que foi onde eu e o Dito nascemos já faz um tempão.

Pois bem: ao pegar a referida estrada, num trecho onde estava sendo inaugurada uma melhoria no asfalto, eis que aparece, para surpresa do Dito, um enorme guarda rodoviário, fazendo sinal para ele, o Dito, encostar.

Dito foi com seu caminhãozinho para a direita da estrada e, lá embaixo, depois de rodar uns 100 metros, foi que parou com tudo. Não se ouvia mais nem  ronco do motor do calhambeque, que era aquela coisa sem definição, de tanto se misturar com o barulho de lata velha e carroceria podre. O diálogo que se seguiu entre ele o guarda, depois de o mesmo ter andado muito pra chegar até o lugar, foi assim:

Guarda - Boa tarde (eram 6 da tarde, que é hora de pescaria).

Dito - Boa tarde, sim sinhô.

Guarda - Vamos ver se está tudo em ordem?

Dito - Vamo sim, sinhô. Tô aqui pra colaborá com a polícia.

Guarda - A carta?

Dito - Que carta, sêo guarda?

Guarda - A carta de motorista, ué. Que carta poderia ser?

Dito - Ahn... Essa, num tenho não. Num deu tempo d’eu cumprá a carta ainda.

Guarda - Documento do carro?

Dito - Que documento?

Guarda - Documento de propriedade do carro. Documento que prova que o carro é seu.

Dito (ofendido) - Pelo amor de Deus! O carro é meu. Comprei ele à prestação do Coroné Lindário. Pode pergunta lá em São Joaquim. Todo mundo me cunhece.

Guarda (já meio impaciente) - Mas o senhor tem que ter esse documento, meu amigo. Quer dizer que não tem?

Dito - Não sinhô. Esse documento, também num tenho não. Mas assim que eu pudé eu compro ele também...

Guarda (indo à frente do caminhãozinho) - Acenda os faróis.

Dito - O sinhô vá descurpá. O faró da esquerda tá queimado. E o da direito tá sem luz.

Guarda - O senhor não tem nem para-choque. É o que eu estou vendo.

Dito - Não, sinhô. Onde eu trabalho num precisa. Num tem choque cum nada. É nas fazenda, puxando cana.

Guarda - Buzina? O senhor tem?

Dito - Não, sinhô. Buzina num tenho também não. Num vô menti pro sinhô. O sinhô acha que eu vô gastá dinheiro cum supérfuo?

Guarda (já muito irritado com tudo) - Eu espero que, pelo menos, breque o senhor tenha.

Dito - Se eu tivesse breque tinha para lá atrás, quando o sinhô mandô!

Guarda (já puto) - Não tem breque também, não é? Pois bem: o senhor não tem carta, não tem documento, não tem farol, não tem buzina, não tem breque... Olha, meu amigo, se eu for multar o senhor, nem vendendo este caminhão vai dar pra pagar tanta multa. Aonde o senhor está indo agora?

Dito (calmo) - Tô indo pescá uns peixinhos no Sapucaí, que fica logo ali, ó.

Guarda (puto, mas compreensivo) - Vamos fazer uma coisa. Faz de conta que eu não vi o senhor. Pode ir embora com o seu “veículo”.

Dito (calmamente, do seu jeito gaiato) - Então, sêo guarda, me faz um favô. Dá uma impurradinha no bicho que tô sem bateria tomém...

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(Rolando Boldrin “Contando Causos” – Nova Alexandria)



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