Quem nunca ouviu falar do Dito Preto,
lá da minha terra deveras não sabe nada de mim. Pois até hoje não me apareceu
amigo melhor – e ele infelizmente partiu fora do combinado, que é como eu
costumo dizer. Falo sobre esse personagem real que marcou muito minha vida
porque vou contar uma das suas.
O Dito tinha comprado um
caminhãozinho ano 1928, Chevrolet, que era apelidado de “cabeça-de-cavalo”. O
dito cujo, calhambeque, não tinha mais onde estar estragado. Sem para-choque
dianteiro ou traseiro, sem portas, carroceria podre, toda torta, pintura
enferrujada que não dava nem pra ver a cor do bicho. Enfim, era aquele
despropósito de viatura.
Mas, como o motor estava retificado,
e esses motorzinhos vão longe até não sei quando, para o que ele queria de sua
serventia tava pra lá de bom. Era só para o trabalho de puxar cana nas fazendas
das redondezas, e isso ele aguentava bem.
Aos sábados, que era dia de folga do
Dito – e é num desses dias em que se passa o nosso causo -, o Dito como sempre
toma o rumo da Via Anhanguera, que leva até o rio Sapucaí, que está bem
pertinho da nossa terrinha, que é São Joaquim da Barra, que foi onde eu e o
Dito nascemos já faz um tempão.
Pois bem: ao pegar a referida
estrada, num trecho onde estava sendo inaugurada uma melhoria no asfalto, eis
que aparece, para surpresa do Dito, um enorme guarda rodoviário, fazendo sinal
para ele, o Dito, encostar.
Dito foi com seu caminhãozinho para a
direita da estrada e, lá embaixo, depois de rodar uns 100 metros , foi que
parou com tudo. Não se ouvia mais nem
ronco do motor do calhambeque, que era aquela coisa sem definição, de
tanto se misturar com o barulho de lata velha e carroceria podre. O diálogo que
se seguiu entre ele o guarda, depois de o mesmo ter andado muito pra chegar até
o lugar, foi assim:
Guarda - Boa tarde (eram 6 da
tarde, que é hora de pescaria).
Dito - Boa tarde, sim sinhô.
Guarda - Vamos ver se está tudo em
ordem?
Dito - Vamo sim, sinhô. Tô aqui
pra colaborá com a polícia.
Guarda - A carta?
Dito - Que carta, sêo guarda?
Guarda - A carta de motorista, ué.
Que carta poderia ser?
Dito - Ahn... Essa, num tenho
não. Num deu tempo d’eu cumprá a carta ainda.
Guarda - Documento do carro?
Dito - Que documento?
Guarda - Documento de propriedade
do carro. Documento que prova que o carro é seu.
Dito (ofendido) - Pelo
amor de Deus! O carro é meu. Comprei ele à prestação do Coroné Lindário. Pode
pergunta lá em São
Joaquim. Todo mundo me cunhece.
Guarda (já meio impaciente) - Mas o senhor tem que ter esse documento, meu amigo. Quer dizer que não tem?
Dito - Não sinhô. Esse
documento, também num tenho não. Mas assim que eu pudé eu compro ele também...
Guarda (indo à frente do
caminhãozinho) -
Acenda os faróis.
Dito - O sinhô vá descurpá. O
faró da esquerda tá queimado. E o da direito tá sem luz.
Guarda - O senhor não tem nem
para-choque. É o que eu estou vendo.
Dito - Não, sinhô. Onde eu
trabalho num precisa. Num tem choque cum nada. É nas fazenda, puxando cana.
Guarda - Buzina? O senhor tem?
Dito - Não, sinhô. Buzina num
tenho também não. Num vô menti pro sinhô. O sinhô acha que eu vô gastá dinheiro
cum supérfuo?
Guarda (já muito irritado com tudo) - Eu
espero que, pelo menos, breque o senhor tenha.
Dito - Se eu tivesse breque
tinha para lá atrás, quando o sinhô mandô!
Guarda (já puto) - Não
tem breque também, não é? Pois bem: o senhor não tem carta, não tem documento,
não tem farol, não tem buzina, não tem breque... Olha, meu amigo, se eu for
multar o senhor, nem vendendo este caminhão vai dar pra pagar tanta multa.
Aonde o senhor está indo agora?
Dito (calmo) - Tô indo pescá uns
peixinhos no Sapucaí, que fica logo ali, ó.
Guarda (puto, mas compreensivo) -
Vamos fazer uma coisa. Faz de conta que eu não vi o senhor. Pode ir embora com
o seu “veículo”.
Dito (calmamente, do seu jeito
gaiato) -
Então, sêo guarda, me faz um favô. Dá uma impurradinha no bicho que tô sem
bateria tomém...
§ § § §
(Rolando Boldrin “Contando Causos” – Nova Alexandria)
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