terça-feira, 6 de maio de 2014

Os crimes da Rua do Arvoredo



Rua do Arvoredo - 1860

(Atual Rua Fernando Machado)


No inicio da segunda metade do século XIX, a produção de linguiça em Porto Alegre já era insuficiente para atender à população. Havia uma fábrica no Morro de Santana e um cidadão que a história registra como Lourenço Brabo (juntamente com seus irmãos João e Nico) não tinha mãos a medir com sua indústria. Foi então que um indivíduo, que as crônicas dizem ser de nacionalidade alemã (mas, que acredito ser apenas de origem, uma vez que antigamente se aplicava esse epíteto aos descendentes de teutos) chamado Ramis ou Rams (na verdade seu nome era José Ramos) e sua mulher Catarina Palse (dotada de beleza invulgar) se estabeleceram na rua do Arvoredo numa casa de porta e duas janelas, mais ou menos onde hoje se situa o Edifício Rio Uruguai na esquina da rua Espírito Santo, passando a fabricar uma deliciosa linguiça. Dizem que era imensa a freguesia do casal a ponto de ambos não ter mãos a medir no seu trabalho. Isso pela excelência do produto fabricado, que era objeto da procura de gente de vilas vizinhas, inclusive. Mas, enquanto florescia a “indústria do Ramis”, a vila assistia a uma série interminável de desaparecimentos misteriosos. Até que um dia tocou a vez de um caixeiro de armazém da rua do Arvoredo, desaparecer como por encanto. Mas, por uma dessas obras do destino, acompanhava sempre o dito o seu cachorrinho, que foi encontrado ganindo e arranhando a porta do Ramis. A vizinhança não teve dúvida: chamou a polícia. Esta, penetrando na casa, encontrou no porão restos de esqueletos humanos. E logo depois a notícia estourava na cidade: na Rua do Arvoredo funcionava uma fábrica de linguiça de carne de gente! Começavam a ser conhecidos os pormenores: o Ramis se valia dos encantos de sua mulher, que ia à rua conquistar os homens, atraindo-os para aquele “lúgubre matadouro”, que a seguiam como cordeirinhos, antevendo umas deliciosas horas de amor... A princípio, Catarina atraía apenas os forasteiros cujo desaparecimento não seria logo percebido na cidade. Os ditos eram mortos e saqueados de seus objetos. Parece, que de início, o fito principal era o roubo e que depois surgiu a ideia de se utilizarem as carnes do cadáver na fabricação de linguiças... E como Ramis os matava? Deixemos que Aquiles Porto Alegre narre o ´método´: “Ao ser conduzido da sala para outro compartimento, o assoalho, subitamente, desaparecia sob seus pés: era um alçapão que se abria. O desgraçado tombava no lúgubre porão, onde Ramis, que já o esperava, prostrava-o com um golpe de machadinha na cabeça. Em seguida saqueava a vítima: dinheiro, joias, roupas, calçados, tudo lhe tirava e ia mostrar a sua cúmplice, que sorria, vaidosa da sua força de sedução, o produto da “féria”. Horas depois o Ramis voltava ao porão, a fim de completar a sua satânica tarefa. Com a habilidade de um consumado anatomista começava a obra de dissecação, separando o necessário para a linguiça: carne, sebo, as tripas”.

E acrescenta o velho cronista que essa dissecação era acompanhada de “Volkslieder” do Reno, entoados a meia voz pelo macabro carniceiro. Escasseando os forasteiros, os encantos da Catarina se voltaram para os “conquistadores” da cidade. O caixeiro, certamente, também fora atraído pelos seus encantos e morto porque Ramis desconfiava que, dado à proximidade do armazém, ele tivesse observado a entrada das vítimas em sua residência, decidindo, portanto, eliminá-lo. Submetido a julgamento, Ramis foi condenado à morte e Catarina à prisão perpétua. Mas, como D. Pedro II era muito magnânimo, comutou a pena para a de prisão perpétua e Ramis veio a morrer velho e cego (e também leproso) na prisão (na verdade morreu no dia 1° de agosto de 1893, na Santa Casa de Misericórdia), “mas sem remorso”, acrescenta Aquiles. Quanto à Catarina, morreu cancerosa na via pública em 1888 (na verdade morreu em 1891, sendo enterrada como indigente no cemitério da santa Casa), pois vivia de esmolas.

Será fácil aos leitores imaginar o impacto produzido nos estômagos porto-alegrenses a notícia de que as “deliciosas linguiças do Ramis” eram feitas com “carne de gente”. Dizem os cronistas que houve muito vômito, choro e ranger de dentes na cidade.


(Do livro “Crônicas das Ruas de Porto Alegre”, de Leandro Telles)




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