quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Os tipos humanos de Porto Alegre



Os tipos populares surgem como elementos característicos da identidade urbana de Porto Alegre, como vozes que atravessavam a Rua da Praia dando-lhe uma nota pitoresca. Entre os mais característicos estavam os vendedores de jornais, como o Adãozinho, a Maria Chorona e o João das Balas. Mas também, músicos e vendedores de rua, cujos verdadeiros nomes e histórias eram desconhecidos, embora tivessem lugar na memória afetiva da Rua da Praia.

Nilo Ruschel recordava da presença negra no carnaval de rua em Porto Alegre no início do século. O autor lembrava-se do preconceito racial da sociedade local, já que os negros deviam ficar do “outro lado” da rua nos desfiles de carnaval.

Apesar de evocar principalmente espaços e formas de sociabilidade masculinas, as mulheres também têm seu lugar de memória nas crônicas de Ruschel. Tanto àquelas que pertenciam às elites e ao meio artístico, quanto as pertencentes às camadas populares. Entre elas estava a Maria Chorona, cuja voz ecoava na memória do cronista.


Maria Chorona, foto acima, representava as mulheres das camadas populares em sua faina diária pelas ruas da cidade, exercendo pequenos ofícios na luta pela sobrevivência. Seu pregão soava como um lamento aos ouvidos de Ruschel, misturando-se à voz de outros vendedores de rua nas noites frias de inverno, testemunhando a difícil condição de vida das mulheres das camadas populares. O autor também se lembrava das “mariposas”, que à noite das portas e janelas das casas modestas do Beco do Oitavo, iluminadas por luzes vermelhas, abordavam os passantes.

As mulheres da elite frequentavam as confeitarias da Rua da Praia, acompanhadas pelas filhas ou marido. A nova cultura urbana possibilitou a conquista de novos espaços de sociabilidade e maior liberdade para as mulheres. Porém, existiam espaços, como o ensino superior, em que as mulheres não tinham acesso nos anos 1920 e 30.

Ruschel evocava a presença dos imigrantes entre os sujeitos que animavam a Rua da Praia e contribuíram para a formação da nova cultura pública que se articulava ao redor de cafés, confeitarias, bares e restaurantes. O grupo mais citado pelo autor são os alemães, que aparecem como introdutores do hábito de tomar chope após o expediente nos bares do centro.

O cronista não idealiza a presença dos imigrantes na sociedade local, recorda-os também entre as camadas populares e menos privilegiadas da sociedade porto-alegrense, embora lembrasse principalmente os bem sucedidos como o italiano Nicolau Rocco, dono da Confeitaria Rocco.

Ruschel rememorava, pontualmente, a presença de outros imigrantes e estrangeiros em Porto Alegre, nas artes e no comércio, entre outros, franceses, ingleses, austríacos e espanhóis. O grupo dos estudantes é lembrado como muito atuante na cidade, tanto nas repúblicas, onde se formavam futuros líderes políticos, quanto no teatro e na literatura como agentes de inovações culturais formais e temáticas.

Os políticos, apesar de pertencerem a facções políticas diferentes, tinham hábitos sociais e padrões de consumo semelhantes como membros da elite, frequentando os mesmo lugares: alfaiatarias, restaurantes e cafés.

Este cronista recordava que era possível encontrar no Largo dos Medeiros os jornalistas a caça das notícias nas rodas dos políticos. Ele lembrava que, ao sair da redação do jornal, já de madrugada, ia direto ao Café Suíça. No Café Colombo encontrava o Augusto Meyer, o cronista Otávio Telles de Freitas do Diário de Notícias, o poeta Rui Cirne Lima e o Masueto Bernardi. Na porta da Livraria do Globo Athos Damasceno Ferreira, Moysés Vellinho, Carlos Dante de Morais, Rubens Barcelos e Osvaldo Aranha.

Em outra crônica, o autor referia-se aos intelectuais que frequentavam o Chalé da Praça 15 de Novembro, como “mais ou menos a mesma turma do Colombo da década de Vinte”: Theodomiro Tostes, Paulo de Gouvêa, Leônidas Garcês, Augusto Meyer Joaquim Guerreiro, Sotero Cosme, Athos Damasceno, Celso Aquino, Sérgio de Gouvêa. Tratava-se de um grupo de jornalistas, escritores, advogados e políticos que atuavam em várias áreas da vida cultural porto-alegrense nas décadas de 1920 a 1940. Certos sujeitos tinham seu ponto certo numa porta, parede ou esquina.

Os músicos formavam outro grupo que circulava pelo centro da cidade e reunia-se em determinados bares, restaurantes e cafés. A Rua da Praia era apresentada como um caminho feito de música e sons, onde de espaço em espaço os cafés derramavam melodias pelas calçadas e convidavam os passantes a sentar e tomar uma xícara de café.

Observa-se que Ruschel tratava de formas de sociabilidade que caracterizavam uma determinada cultura urbana que se organizava ao redor desses cafés no centro da cidade. Uma forma de cultura pública que englobava as elites e as camadas médias urbanas que circulavam pelo centro da cidade.

A Rua da Praia surge nas crônicas de Nilo Ruschel como algo mais do que uma simples rua. Ela é na verdade um território afetivo e existencial com limites imprecisos, cujas margens estendem-se bem além das quadras que figuram nos mapas. Um espaço síntese de todo o centro da cidade, mas também um porto do qual é possível zarpar ou no qual se pode aportar trazendo histórias de outros lugares. Um lugar de memória de um grupo socioprofissional (jornalistas, escritores, advogados, políticos) e de formas de sociabilidade de uma cultura pública urbana nos anos 1920, 1930 e 1940, que se articulava ao redor de cafés, bares, restaurantes, alfaiatarias, redações e hotéis do centro da cidade.

As crônicas desse autor rememoram uma cultura pública diferente da das grandes metrópoles, onde a multidão permitia o anonimato e o individualismo. As lembranças de Ruschel apontam para sujeitos e grupos conhecidos, com seus hábitos e espaços de eleição.

Ruschel referia-se ao tempo geralmente de forma imprecisa em suas crônicas, eventualmente apontando uma década, um ano e, mais raramente, uma data precisa para falar de sujeitos, espaços urbanos e acontecimentos.

O autor estendia os limites temporais dessa cultura pública urbana dos cafés e bares da Rua da Praia dos anos 1920 até os anos 1950. Um tempo, segundo o cronista, que ninguém tomava o café de pé e este vinha acompanhado de um copo d’água e a conversa fluía despreocupadamente. O cronista experienciava esse passado como um tempo perdido do qual o presente se distanciou.

Ruschel apontava para a transformação da fisionomia do centro da cidade e das formas de sociabilidade pública. Os bancos, as financeiras e as lanchonetes vinham substituindo os cafés e os bares nos anos 1960 e início dos 70. Uma aceleração da temporalidade com a mudança física dos espaços urbanos, que provocou um corte com as experiências urbanas do passado. A ruptura com a antiga cultura pública é o fator que desencadeia a demanda de memória, que as crônicas de Ruschel vêm responder.

 Os leitores dessas crônicas pertenciam preferencialmente às camadas médias urbanas, segmento social ao qual pertence o próprio escritor e uma boa parte de suas personagens. A publicação dessas crônicas corresponde ao contexto de modernização acelerado, contraditório, desigual e excludente dos anos 1970, durante os governos militares, que a classe média estava vivendo.

A identidade da cidade se colocava como um problema. O cronista procurava desvendar os sentidos e os significados dos vários lugares da cidade em processo de transformação. Nilo Ruschel experienciou sua juventude na Porto Alegre dos anos 1920 e 30. Em 1970, Nilo Ruschel trata da cidade do passado, de uma cultura urbana que se organizava ao redor de cafés, bares e restaurantes nas décadas de 1920 a 1940. Nesse sentido, as crônicas de Ruschel inserem-se na tradição de escrita dos cronistas da cidade. Tradição de escrita sobre a memória das experiências urbanas no passado, que se desenvolve em paralelo à produção historiográfica sobre Porto Alegre. Tradições que não são estanques, mas que se cruzam pelas características do campo cultural e na forma de escrita desses autores, que circula entre a memória coletiva, a literatura e a história. Produtores da memória coletiva que participavam simultaneamente do Instituto Histórico e Geográfico, da Academia Rio-grandense de Letras, trabalhavam ou colaboravam em jornais locais e publicavam livros sobre a cidade. Mas, também, que partilhavam experiências urbanas, frequentando os mesmos espaços de sociabilidade na cidade: cafés, bares, restaurantes e livrarias.

Memória das elites e das camadas médias, centrada, sobretudo, nos espaços de sociabilidade de uma elite letrada no centro da capital. E as classes populares e os arrabaldes? E as periferias que recebiam os migrantes do interior e a massa de novos trabalhadores da indústria e do comércio? São João, Navegantes, Vila Bom Jesus, a Ilhota e tantos outros sujeitos e lugares da cidade? Essas são algumas das lacunas sociais da memória e do esquecimento do cronista, que demandariam a memória e a fala de outros sujeitos, bem como o trabalho do historiador nesses desvãos da memória.

Ruschel é um memorialista que se volta para os sujeitos do passado e busca compartilhar as suas lembranças de uma “outra Porto Alegre” com os membros de sua classe sócio-profissional e da sua geração, bem como legar as memórias de sua experiência social de cidade às novas gerações. Ruschel não se detém na análise das mudanças e nos convida a buscar um refúgio na Porto Alegre do passado menos complexas e mais segura do que a dos anos 1970.

Mas as pontes para o retorno estão cortadas, como encontrar uma saída? Encontraremos uma saída? A crônica seria essa saída? Permitiria-nos elaborar a perda das experiências sociais, substituídas por frágeis vivências? A perda da memória coletiva e da antiga arte da narrativa se transformou na tentativa de reconstituir uma memória social fragmentada e mediatizada através da leitura dessas crônicas publicadas nas páginas dos jornais e depois em livros.

Ou, por outro lado, não seriam as crônicas como aquelas garrafas lançadas ao mar em busca de um receptor, alguém apto para compreender e decifrar uma mensagem impregnada de memória, de tempo e de experiência social que ela carrega?

Quem teria as respostas para esta pergunta? O cronista? O leitor? O historiador? O habitante comum? Após um longo percurso essa e outras perguntas continuam a nos desafiar e a exigir dos historiadores e dos cidadãos das cidades brasileiras respostas novas a cada momento frente ao continuo e acelerado processo de transformações da estrutura social e da paisagem urbana.

Nenhum comentário:

Postar um comentário