Os tipos populares surgem como
elementos característicos da identidade urbana de Porto Alegre, como vozes que
atravessavam a Rua da Praia dando-lhe uma nota pitoresca. Entre os mais
característicos estavam os vendedores de jornais, como o Adãozinho, a Maria
Chorona e o João das Balas. Mas também, músicos e vendedores de rua, cujos
verdadeiros nomes e histórias eram desconhecidos, embora tivessem lugar na
memória afetiva da Rua da Praia.
Nilo Ruschel recordava da presença
negra no carnaval de rua em
Porto Alegre no início do século. O autor lembrava-se do
preconceito racial da sociedade local, já que os negros deviam ficar do “outro
lado” da rua nos desfiles de carnaval.
Apesar de evocar principalmente
espaços e formas de sociabilidade masculinas, as mulheres também têm seu lugar
de memória nas crônicas de Ruschel. Tanto àquelas que pertenciam às elites e ao
meio artístico, quanto as pertencentes às camadas populares. Entre elas estava
a Maria Chorona, cuja voz ecoava na memória do cronista.
Maria Chorona, foto acima, representava as
mulheres das camadas populares em sua faina diária pelas ruas da cidade,
exercendo pequenos ofícios na luta pela sobrevivência. Seu pregão soava como um
lamento aos ouvidos de Ruschel, misturando-se à voz de outros vendedores de rua
nas noites frias de inverno, testemunhando a difícil condição de vida das
mulheres das camadas populares. O autor também se lembrava das “mariposas”, que
à noite das portas e janelas das casas modestas do Beco do Oitavo, iluminadas
por luzes vermelhas, abordavam os passantes.
As mulheres da elite frequentavam as
confeitarias da Rua da Praia, acompanhadas pelas filhas ou marido. A nova
cultura urbana possibilitou a conquista de novos espaços de sociabilidade e
maior liberdade para as mulheres. Porém, existiam espaços, como o ensino
superior, em que as mulheres não tinham acesso nos anos 1920 e 30.
Ruschel evocava a presença dos
imigrantes entre os sujeitos que animavam a Rua da Praia e contribuíram para a
formação da nova cultura pública que se articulava ao redor de cafés,
confeitarias, bares e restaurantes. O grupo mais citado pelo autor são os
alemães, que aparecem como introdutores do hábito de tomar chope após o expediente
nos bares do centro.
O cronista não idealiza a presença
dos imigrantes na sociedade local, recorda-os também entre as camadas populares
e menos privilegiadas da sociedade porto-alegrense, embora lembrasse
principalmente os bem sucedidos como o italiano Nicolau Rocco, dono da
Confeitaria Rocco.
Ruschel rememorava, pontualmente, a
presença de outros imigrantes e estrangeiros em Porto Alegre , nas
artes e no comércio, entre outros, franceses, ingleses, austríacos e espanhóis.
O grupo dos estudantes é lembrado como muito atuante na cidade, tanto nas
repúblicas, onde se formavam futuros líderes políticos, quanto no teatro e na
literatura como agentes de inovações culturais formais e temáticas.
Os políticos, apesar de pertencerem a
facções políticas diferentes, tinham hábitos sociais e padrões de consumo
semelhantes como membros da elite, frequentando os mesmo lugares: alfaiatarias,
restaurantes e cafés.
Este cronista recordava que era
possível encontrar no Largo dos Medeiros os jornalistas a caça das notícias nas
rodas dos políticos. Ele lembrava que, ao sair da redação do jornal, já de
madrugada, ia direto ao Café Suíça. No Café Colombo encontrava o Augusto Meyer,
o cronista Otávio Telles de Freitas do Diário de Notícias, o poeta Rui Cirne
Lima e o Masueto Bernardi. Na porta da Livraria do Globo Athos Damasceno
Ferreira, Moysés Vellinho, Carlos Dante de Morais, Rubens Barcelos e Osvaldo
Aranha.
Em outra crônica, o autor referia-se
aos intelectuais que frequentavam o Chalé da Praça 15 de Novembro, como “mais
ou menos a mesma turma do Colombo da década de Vinte”: Theodomiro Tostes, Paulo
de Gouvêa, Leônidas Garcês, Augusto Meyer Joaquim Guerreiro, Sotero Cosme,
Athos Damasceno, Celso Aquino, Sérgio de Gouvêa. Tratava-se de um grupo de
jornalistas, escritores, advogados e políticos que atuavam em várias áreas da
vida cultural porto-alegrense nas décadas de 1920 a 1940. Certos sujeitos
tinham seu ponto certo numa porta, parede ou esquina.
Os músicos formavam outro grupo que
circulava pelo centro da cidade e reunia-se em determinados bares, restaurantes
e cafés. A Rua da Praia era apresentada como um caminho feito de música e sons,
onde de espaço em espaço os cafés derramavam melodias pelas calçadas e
convidavam os passantes a sentar e tomar uma xícara de café.
Observa-se que Ruschel tratava de
formas de sociabilidade que caracterizavam uma determinada cultura urbana que
se organizava ao redor desses cafés no centro da cidade. Uma forma de cultura
pública que englobava as elites e as camadas médias urbanas que circulavam pelo
centro da cidade.
A Rua da Praia surge nas crônicas de
Nilo Ruschel como algo mais do que uma simples rua. Ela é na verdade um
território afetivo e existencial com limites imprecisos, cujas margens
estendem-se bem além das quadras que figuram nos mapas. Um espaço síntese de
todo o centro da cidade, mas também um porto do qual é possível zarpar ou no
qual se pode aportar trazendo histórias de outros lugares. Um lugar de memória
de um grupo socioprofissional (jornalistas, escritores, advogados, políticos) e
de formas de sociabilidade de uma cultura pública urbana nos anos 1920, 1930 e
1940, que se articulava ao redor de cafés, bares, restaurantes, alfaiatarias,
redações e hotéis do centro da cidade.
As crônicas desse autor rememoram uma
cultura pública diferente da das grandes metrópoles, onde a multidão permitia o
anonimato e o individualismo. As lembranças de Ruschel apontam para sujeitos e
grupos conhecidos, com seus hábitos e espaços de eleição.
Ruschel referia-se ao tempo
geralmente de forma imprecisa em suas crônicas, eventualmente apontando uma
década, um ano e, mais raramente, uma data precisa para falar de sujeitos,
espaços urbanos e acontecimentos.
O autor estendia os limites temporais
dessa cultura pública urbana dos cafés e bares da Rua da Praia dos anos 1920
até os anos 1950. Um tempo, segundo o cronista, que ninguém tomava o café de pé
e este vinha acompanhado de um copo d’água e a conversa fluía
despreocupadamente. O cronista experienciava esse passado como um tempo perdido
do qual o presente se distanciou.
Ruschel apontava para a transformação
da fisionomia do centro da cidade e das formas de sociabilidade pública. Os
bancos, as financeiras e as lanchonetes vinham substituindo os cafés e os bares
nos anos 1960 e início dos 70. Uma aceleração da temporalidade com a mudança
física dos espaços urbanos, que provocou um corte com as experiências urbanas
do passado. A ruptura com a antiga cultura pública é o fator que desencadeia a
demanda de memória, que as crônicas de Ruschel vêm responder.
Os leitores dessas crônicas
pertenciam preferencialmente às camadas médias urbanas, segmento social ao qual
pertence o próprio escritor e uma boa parte de suas personagens. A publicação
dessas crônicas corresponde ao contexto de modernização acelerado,
contraditório, desigual e excludente dos anos 1970, durante os governos
militares, que a classe média estava vivendo.
A identidade da cidade se colocava
como um problema. O cronista procurava desvendar os sentidos e os significados
dos vários lugares da cidade em processo de transformação. Nilo Ruschel
experienciou sua juventude na Porto Alegre dos anos 1920 e 30. Em 1970, Nilo
Ruschel trata da cidade do passado, de uma cultura urbana que se organizava ao
redor de cafés, bares e restaurantes nas décadas de 1920 a 1940. Nesse sentido,
as crônicas de Ruschel inserem-se na tradição de escrita dos cronistas da
cidade. Tradição de escrita sobre a memória das experiências urbanas no
passado, que se desenvolve em paralelo à produção historiográfica sobre Porto
Alegre. Tradições que não são estanques, mas que se cruzam pelas
características do campo cultural e na forma de escrita desses autores, que
circula entre a memória coletiva, a literatura e a história. Produtores da
memória coletiva que participavam simultaneamente do Instituto Histórico e
Geográfico, da Academia Rio-grandense de Letras, trabalhavam ou colaboravam em
jornais locais e publicavam livros sobre a cidade. Mas, também, que partilhavam
experiências urbanas, frequentando os mesmos espaços de sociabilidade na
cidade: cafés, bares, restaurantes e livrarias.
Memória das elites e das camadas médias,
centrada, sobretudo, nos espaços de sociabilidade de uma elite letrada no
centro da capital. E as classes populares e os arrabaldes? E as periferias que
recebiam os migrantes do interior e a massa de novos trabalhadores da indústria
e do comércio? São João, Navegantes, Vila Bom Jesus, a Ilhota e tantos outros
sujeitos e lugares da cidade? Essas são algumas das lacunas sociais da memória
e do esquecimento do cronista, que demandariam a memória e a fala de outros
sujeitos, bem como o trabalho do historiador nesses desvãos da memória.
Ruschel é um memorialista que se
volta para os sujeitos do passado e busca compartilhar as suas lembranças de
uma “outra Porto Alegre” com os membros de sua classe sócio-profissional e da
sua geração, bem como legar as memórias de sua experiência social de cidade às
novas gerações. Ruschel não se detém na análise das mudanças e nos convida a
buscar um refúgio na Porto Alegre do passado menos complexas e mais segura do
que a dos anos 1970.
Mas as pontes para o retorno estão
cortadas, como encontrar uma saída? Encontraremos uma saída? A crônica seria
essa saída? Permitiria-nos elaborar a perda das experiências sociais,
substituídas por frágeis vivências? A perda da memória coletiva e da antiga
arte da narrativa se transformou na tentativa de reconstituir uma memória
social fragmentada e mediatizada através da leitura dessas crônicas publicadas
nas páginas dos jornais e depois em livros.
Ou, por outro lado, não seriam as
crônicas como aquelas garrafas lançadas ao mar em busca de um receptor, alguém
apto para compreender e decifrar uma mensagem impregnada de memória, de tempo e
de experiência social que ela carrega?
Quem teria as respostas para esta
pergunta? O cronista? O leitor? O historiador? O habitante comum? Após um longo
percurso essa e outras perguntas continuam a nos desafiar e a exigir dos
historiadores e dos cidadãos das cidades brasileiras respostas novas a cada
momento frente ao continuo e acelerado processo de transformações da estrutura
social e da paisagem urbana.
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