Januário de Freitas
Simões Pires
Depois de muito tempo sem se
verem, os velhos amigos, que uma diferença apartara, encontraram-se na divisa
do campo.
– Bueno,
compadre, que tal le vai?
– Bem,
gracias, e por lá como vão? A comadre, o afilhado...
– Vão indo como Deus quer e manda.
De um lado, o coronel Severo, gaúcho
de têmpera, veterano da revolução de 93, tipo austero, era a figura típica dos
patriarcas de antanho. Conservara hábitos e costumes dos seus antepassados, os
primeiros povoadores do Rincão, e os cultivava com orgulho e certa sobranceria.
Herdeiro de glórias farroupilhas, era respeitado e acatado pelos vizinhos.
Embora já idoso, não falhava campereada e era, com firmeza, quem metia o cavalo
no rodeio para apartar o novilhada gorda para a charqueada. Nas horas de lazer,
principalmente no inverno, quando o minuano guasqueava as coxilhas com seu frio
cortante, ele ficava no galpão, tomando chimarrão e emendando algum laço
rebentado ou fazendo botões e corredores de tento fino.
Tinha especial habilidade nesse
mister, para o que usava sempre, na cintura, uma afiada faquinha de cabo de
prata. Pendurava a lonca de couro no esteio do galpão, corria a faca, e o tento
saía parelho. Inclinava a mão mais para um lado, e desquinava o tento que
ficava assim, pronto para costurar os aperos.
Sua estância era grande e com poucas
divisas. O gado andava às soltas, pelos altos e baixados, pela costa do Ibicuí,
ora procurando sombras e pastagens, ora nos paradores, fugindo da mutuca. A
lotação do campo vinha aumentando e como este estava com uma divisa ainda
aberta, o gado da vizinhança ajudava aumentá-la. O pasto vinha escasseando e o
rebanho estava fraco.
– Se o inverno vier rigoroso – dizia
o coronel – o tendal vai ser grande. Inda mais com essa maldita afetosa...
Resolveu, por isso, correr o aramado
na divisa com o Compadre. Assim pensando, entrou em entendimento com o vizinho,
mas não chegaram a um acordo.
Achava o coronel que a divisa devia
partir da Sanga da Areia, vindo morrer no Capão do Angico. O outro contrariava,
julgando-se prejudicado. Insistia o Coronel Severo, com sua autoridade nunca
contestada.
Sempre ouvira dizer por seu pai que a
divisa era por ali. Até alcançara os marcos de pedra que depois desapareceram.
As relações de ambos foram ficando
estremecidas. Cessaram as visitas domingueiras. Nem o afilhado ia mais pedir a
bênção ao padrinho. Com receio de se encontrarem, deixaram de assistir à
carreira do zaino do Major Machado com o baio do Alegrete.
– Não quero brigar com meu compadre –
dizia o Coronel. – Mas ele não tem razão. Não passa de um teimoso e arreliento.
O compadre, por sua vez, dizia:
– Não abro mão dos meus “direitos”.
Respeito muito o Coronel; a comadre é uma santa e Quinca é como se fosse meu
filho... Mas razão é razão...
Os vizinhos ouviam os pontos de vista
de ambos e ficavam contrafeitos. Não queriam tomar partido, e diziam uns:
– Aquela coisa ainda vai dar em
“porquera”.
– Ambos são opiniáticos, brabos e
teimosos, acrescentavam outros.
O compadre andava sorumbático. Falava
sozinho... Montava a cavalo e saía a esmo pelo campo, sem olhar o gado no
rodeio nem dava atenção às vacas paridas e não enxergava as bicheiras nos terneiros.
Monologava a meia voz... Ia ao tranquito do matungo, com o seu inseparável
relho de cabo de pitangueira, duro e pesado como ferro. De vez em quando, levantava-o
no ar, como se ameaçasse um inimigo invisível.
Diante dessa situação tensa, o Major
Machado, também veterano de 93 e amigo comum de ambos, resolveu intervir na
questão, como mediador.
– Que diabo – dizia – isto tem de
terminar. Essa divergência pode separar duas antigas famílias do Rincão.
O Coronel Severo ouviu as indiretas
do amigo e cortou a conversa abruptamente. Nunca tinha recuado. Não era
covarde. Brigara no combate de Inhanduí até o anoitecer, sem ceder um palmo de
terra ao inimigo. Não era, agora, depois de velho, que iria arrepiar carreira.
O outro também se mostrou
irredutível. O Major Machado não se deu por vencido. Devagarito, foi
convencendo um e depois o outro, que acabaram por aceitar a arbitragem.
O amigo marcou a divisa, com plenos
poderes de ambos, que lá não apareceram. Cada um mandou buscar, no Alegrete, a
parte que lhe cabia na meação.
O aramado foi feito. Moirões de
guajuvira e tramas de angico. Sete fios de arame Gorgon, daqueles que não vem
mais. Trabalho bem feito, pois ainda havia bons alambradores. O arame esticado
como corda de viola, zunia quando soprava o vento norte.
Os ânimos se acalmaram. Não se falou
mais no assunto. Mas, aquela velha e tradicional amizade, não voltou a ser o
que dantes era. Cada uma na sua fazenda, sem querer ser o primeiro a dar o
braço a torcer.
De uma feita, quando ambos recorriam
os seus campos, o acaso fez com que se encontrassem um de cada lado da divisa
litigiosa.
– Buenas, compadre, que tal te vai?
– Bem, gracias, e por lá como vão? A
comadre, o afilhado...
– Vão indo como Deus quer e manda...
Contrafeitos, conversaram pouco sobre
assuntos banais. Falaram na seca que já estava forte... No tempo firme... Na
peste que já estava pintando... E, conversa vai, conversa vem, olharam para o
aramado e, sem querer, falaram no trabalho dos alambradores... Aos poucos o
assunto veio descambando para a divisa e... deu-se o inevitável.
Todos os pensamentos recalcados e
ocultos naqueles cérebros bárbaros, toda a raiva concentrada, mas latente em
seus espíritos, rebentaram subitamente como açude arrombado pela enchente e,
aos borbotões, se concretizaram em remoques e ofensas recíprocas.
Montado em seu tordilho-negro, o
Coronel Severo, de longo cavanhaque branco, era a figura do centauro dos
pampas, vibrando na eclosão de sua bravura nunca desmentida. O compadre violento
e agressivo, revidava e ofendia, gesticulando com braço, tendo na mão, o seu inseparável
relho de cabo de pitangueira.
No aceso da discussão,
simultaneamente, bolearam a perna dos cavalos e tentaram, ao mesmo tempo,
transpor a cerca, para um corpo a corpo. Dirigiram-se para o mesmo vão de
tramas e, como o arame estava bem esticado, ficaram ambos presos entre dois
fios, inclinados, de frente um para o outro. O compadre, assim mesmo curvado
para a frente e entre os dois fios com uma mão, pegou na barba do Coronel e,
com a outra, levantou a pitangueira...
O Coronel Severo pressentindo quanto
era séria a sua situação se recebesse o golpe, puxou da cintura a faquinha de
prata, afiada como navalha e, levantou-a por baixo, encostou-a na barriga do
compadre, incisivo e convincente, disse:
– Se tu baixar a pitangueira, eu te
desço as tripas aqui mesmo!
E ficaram imóveis, tensos espreitando
qualquer movimento partido do contendor. Um com o braço no ar, ameaçando o
golpe. O outro, com a faca encostada no adversário.
Em segundos, avaliaram o
desfecho trágico da luta... Por fim, o Compadre sentiu a inferioridade de sua
situação, com a ponta da faca adversária a lhe beliscar o ventre. Afrouxou o
braço e baixou o relho.
Cordato, manso, vencido, propôs:
– Coronel, vamos dá por empate?
Desvencilhando-se do aramado,
silenciosos, ambos montaram a cavalo, e seguiram rumos opostos, pela coxilha
imensa, entrecruzadas pelos quero-queros inquietos e barulhentos.
(Do Almanaque do
Correio do Povo – 1967)
(Reprodução de uma gravura
de Berega)
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