sexta-feira, 25 de março de 2016

A aposta fatídica


   
Ivan era um homenzinho tímido, tão tímido que os camponeses do lugar lhe chamavam “Pombo”, ou caçoavam dele dando-lhe o título de “Ivan o Terrível”. Todas as noites ia ao botequim, situado logo depois do cemitério da aldeia. Ao regressar à sua cabana solitária, que ficava do outro lado, não atravessava o cemitério. Havia neste um caminho que lhe pouparia distância, mas ele nunca enveredou por aí, nem mesmo em noites de lua.

Certa feita, no inverno, já noite alta, quando a neve e o vento cortante batiam de encontro às janelas do botequim, os fregueses habituais começaram a lançar-lhe os motejos de costume: “A mãe do Ivan, quando o trazia no ventre, assustara-se com um canário. Daí o “Ivan o Terrível, o Terrivelmente tímido.”

Os humildes protestos de Ivan serviam apenas de estímulo para a galhofa, e esta aumentou ainda quando o jovem tenente Cossaco lançou, o horrível desafio:

– Você é um pombo, Ivan. Mesmo com este frio infernal, você prefere fazer a volta do cemitério, mas não ousa nunca atravessá-lo.

– Não há nada de extraordinário em atravessar-se o cemitério, tenente. É um pedaço de terra, como outro qualquer! balbuciou Ivan.

O tenente exclamou:

– Pois então, é um desafio! Atravessar o cemitério esta noite, Ivan, e dar-lhe-ei cinco rublos, cinco rublos em ouro!

Fosse o vodka ou a tentação dos cinco rublos, ninguém soube jamais qual a verdadeira razão. Ivan, molhando os lábios, respondeu, de súbito:

– Está bem, tenente. Atravessarei o cemitério!

Correu pela sala um murmúrio de dúvida. O tenente, piscando os olhos para os outros, desembainhou a espada.

– Tome, Ivan. Quando chegar ao centro do cemitério, em frente ao maior dos túmulos, enfie a espada na terra. De manhã, iremos lá. E, se encontrarmos a espada na terra, os cinco rublos são seus!

Ivan tomou a espada. Os outros beberam-lhe à saúde:

– À de Ivan o Terrível! E as gargalhadas redobraram.

O vento atirou-se contra Ivan quando ele fechou atrás de si a porta do botequim. O frio cortava como a lâmina de uma faca. Abotoando o seu longo capote, atravessou Ivan a estrada enlameada. Ecoavam ainda nos seus ouvidos, mais altas do que o resto, as palavras que o tenente lhe lançara:

– Cinco rublos, Pombo, se você voltar com vida!

Empurrou o portão do cemitério, cujas dobradiça emitiam um gemido lúgubre. Andava ligeiro. “Terra... terra como qualquer outra”. Mas as trevas em torno enchiam-no de um pesado pavor. ‘Cinco rublos de ouro...”. O vento era cruel, e a espada, em suas mãos, parecia um pedaço de gelo. Ivan, trêmulo, sob o longo e pesado capote, desandou a correr.

Deu, finalmente, com o túmulo grande. É possível que tivesse soluçado, a julgar pelo som que o vento se encarregou de abafar. Ajoelhando-se, apavorado e frio, fincou no chão a lâmina que atravessando a dura crosta gelada mergulhou na terra. Afundou-a, então, com toda a força, até ao punho. Estava feito. O cemitério... o desafio... os cinco rublos de ouro.

Ivan ergueu em tão um dos joelhos. Mas não pôde mover-se mais. Alguma coisa o prendeu. Alguma coisa que o detinha firme e implacavelmente. Procurou libertar-se movendo corpo em todos os sentidos, arquejando de pânico, todo ele tomado de um medo horrível, monstruoso. Lançou alguns gritos de pavor seguidos de lamentos articulados sem nexo...

Encontraram-no, na manhã seguinte, em frente ao túmulo. Estava enregelado. A expressão, que se lia no seu rosto, não era, todavia, de um homem morto pelo frio, mas a de quem sucumbira tomado de indizível pavor. E o sabre do tenente lá estava, enfiado na terra onde Ivan o metera, atravessando e prendendo as abas do seu longo capote...


O texto, provavelmente, foi editado na Seleções de 1942. (Condensado de “Saturday Review of Literature” por Leonard Q. Ross - Seleções de 1942).

Este texto foi retirado do Almanaque do Correio do Povo – 1978, sem dar crédito ao autor do texto.


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