quinta-feira, 1 de maio de 2014

Aos olhos da mestra

(Uma crônica de Moacyr Scliar)

        
Evoco uma cena de minha infância: a professora entrando na sala, e os olhares de cinquenta alunos imediatamente convergindo sobre ela, à espera do que ia fazer ou dizer. A encenação de um texto? Uma aula comum? Uma sabatina de improviso?

Os olhares sobre ela. Durante anos pensei na professora como uma pessoa a ser olhada, a ser observada, a ser escutada. Mas depois – acho que aí já estava me tornando adulto – comecei a pensar na professora como uma pessoa que olha. E como é esse olhar do mestre sobre a classe? Que panorama ele divisa?

Só recentemente, dando palestras a diferentes grupos de estudantes, me dei conta que, da perspectiva do professor, há muitas formas de ver os alunos.

Mas há uma que me parece muito constante: é aquela que divide a classe, mediante uma linha imaginária, em duas metades, a da frente e de trás.

O aluno da frente é o que chega cedo, o que vem limpinho e arrumado. Seus lápis estão cuidadosamente apontados, seus cadernos escrupulosamente cuidados. Ele senta inclinado para a frente; testa enrugada, olhar fixo, boca entreaberta, ele bebe todas as palavras da professora, faz anotações, não esquece nada. O aluno da frente é aplicado; ele sabe tudo; ele tira boas notas, não cola no exame, não conversa com o vizinho do lado.

Muitas vezes fica depois da aula, faz perguntas. Nos velhos tempos este aluno era classificado como Caxias, talvez como homenagem ao infatigável militar que se dedicou – justamente – a impor a ordem e a disciplina neste país; ou, mais grosseiramente, de cu-de-ferrro, sugerindo um traseiro habituado a longas temporadas sobre duros assentos (tanto o apelido como a situação se constituindo no terror da proctologia).

O aluno lá de trás chega depois que a aula começou. Muitas vezes nem traz livros ou cadernos. Senta atirado para trás, encostado na parede – o que é um privilégio de poucos, pois nem todas as filas são a última fila. O aluno lá de trás fuma, diz palavrões, dá tapas nos colegas da frente e conversa com os do lado. Cola descaradamente na prova, mas mesmo assim suas notas são péssimas. Contudo, o que melhor caracteriza o aluno lá de trás são os óculos escuros, particularmente aqueles, hoje raros, de lentes espelhadas.

Atrás dos óculos escuros o aluno lá de trás torna-se uma figura enigmática. A professora nunca sabe se ele está tramando alguma coisa, se está distante, ou mesmo se está dormindo.

Alunos da frente e alunos de trás. Uma classificação que é inútil, naturalmente: na sociedade competitiva em que vivemos é muito possível que o aluno da frente se torne um pobre funcionário e que o aluno de trás se transforme num grande magnata. Mas há outra razão pela qual esta classificação não importa.

É que em algum lugar da classe há um aluno que ama desesperadamente a professora, que povoa com a figura dela seus sonhos e seus devaneios, que suspira por um olhar dela. E este aluno tanto pode estar sentado na frente como atrás. O amor à professora supera todas as barreiras.


Nenhum comentário:

Postar um comentário