Lima Barreto
(Carnaval por Liberati)
– Mas foste
mesmo recrutado?
– Fui; e
comi fogo que não foi graça.
– Como foi a
história?
– Aproximava-se o carnaval. Como era
meu costume, vim para a oficina, onde trabalhava. Eu morava em Santa Alexandrina ,
pelas bandas do Largo do Rio Comprido. Ao chegar à oficina, na Rua dos
Inválidos, o mestre me disse: “Valentim, você hoje tem um serviço externo. Você
vai até Caxambi, no Méier, para assentar as caixas d’água de um prédio novo.” Deu-me
o dinheiro das passagens e parti. Conhecia aquela zona e, a fim de poupar
níqueis, desprezei o bonde e fui a pé. Passava eu por uma rua transversal à
Imperial, quando fui abordado por três ou quatro tipos fardados, do mais
curioso aspecto. Eram de diversas cores, formando uma escolta, cujo comandante,
um cabo, era um preto. E que preto engraçado! Desengonçado, pernas compridas e
arqueadas, pés espalhados – era mesmo um macaco. A farda, blusa e calça, estava
toda pingada; o cinturão subira-lhe até quase ao peito... Enfim, era um
verdadeiro jagodes, um “Judas”.
– Que é que
eles te disseram?
– O cabo veio direito a mim e
perguntou-me com toda a empáfia: “Onde é que você vai?” Disse-lhe; mas a feroz
autoridade parecia ter implicado comigo, tanto que me intimou: “Você vai à
presença do senhor capitão Lulu.” “Mas não fiz nada”, objetei. Ele foi
inabalável e não quis atender os meus rogos. Chorei, roguei, mas nada! Num dado
momento, um dos soldados disse: “Seu cabo está com muitos luxos. Se fosse
comigo, esse paisano ia já.” E fez menção de desembainhar um enorme sabre de
cavalaria que tinha à cinta.
– Mas que
soldados eram estes?
– Não estás
vendo logo? Eram guardas nacionais.
– Percebo.
Foste?
– Fui. Que
remédio?
– Que te
fizeram?
– Vou contar-te tintim por tintim.
Levaram-me a presença do oficial. Era um mulato forte, simpático, e o seria
intensamente se não fosse a sua presunção e pernosticidade. Era assim o capitão
Lulu. Muito apurado no seu uniforme, disse-me num tom imperativo: “Você é um
reles desertor. É um ignóbil brasileiro que recusa servir a sua pátria.”
Objetei-lhe cheio de susto: “Mas, senhor capitão, nunca fui soldado, como posso
ser desertor?” O capitão Lulu não respondeu diretamente à minha interrogativa,
mas perguntou-me: “Como é que você se chama?” Disse-lhe. Indagou ainda: “Onde é
que você mora.” Indiquei: “Rua tal, em Santa Alexandrina.” Isto
pareceu-lhe contrariar; mas nada disse. Pôs-se a escriturar num livro e, por
fim, falou-me: “Encontrei os seus assentamentos. Você está há muito tempo
qualificado neste batalhão – 01.723.436. regimento de cavalaria da Guarda
Nacional. Apesar de reiteradas intimações, você não se tem apresentado. Está
preso disciplinarmente por oito dias.” Fiquei tonto, atordoado: “Mas senhor”,
fiz eu, a tremer. “Cabo”, gritou o Lulu, “cumpra as ordens. Já sabe!”
– Puseram-te
na cadeia?
– Não. Revistaram-me, tiraram-me as
ferramentas e o dinheiro que levava. Isto tudo, na presença do marcial Lulu.
Quando este viu os cobres, gritou: “Dá cá! Esses cobres vão para a caixa do
regimento.” Após o que, levaram-me para um outro compartimento, onde me fizeram
despir a roupa e vestir uma calça e blusa do uniforme. Das peças que lá havia,
a única blusa que me chegava, tinha as divisas de cabo. Não quiseram
arrancá-las e fui feito cabo de esquadra. Isto não impediu, porém, que me
pusessem em serviço árduo.
– Qual foi?
– Meteram-me uma enxada na mão e
fizeram-me capinar a chácara durante quase oito dias, passando fome.
– Como?
– A comida era café ralo e pão duro,
pela manhã; e, às duas horas, um ensopado de mamão verde, muito mal feito, no
qual encontrar uma pastilha de carne seca era uma raridade de fazer alegria até
chorar. Na sexta-feira que precedia o sábado, véspera do carnaval, descansei.
Ordenaram-me que lavasse a farda e a roupa branca, o que fiz vestindo em cima
do corpo a fatiota com que fora preso. Mandaram passar a roupa lavada a ferro;
e, no sábado, ordenaram-me que a envergasse e fosse à presença do comandante.
Apresentei-me, fiz a continência que me haviam ensinado e esperei as ordens. O
Lulu disse para o superior: “Está aí, coronel, o desertor que capturei.” O
comandante recostado na cadeira, acariciou o ventre proeminente com as duas
mãos e disse com sotaque italiano: “Que vai ele fare?” O capitão Lulu
respondeu: “Vai ser minha ordenança, no patrulhamento do carnaval.” O coronel
ítalo-brasileiro só se limitou a dizer: “Bene!” À tarde, no sábado, Lulu, antes
de sairmos, mandou-me chamar e aconselhou-me: “Você me parece boa pessoa,
disciplinada. Procede muito bem. ‘A submissão é a base do aperfeiçoamento’,
disse Victor Hugo. Se sou oficial, se cheguei à posição em que estou, devo, não
só ao meu esforço, como também a ser obediente aos meus superiores. Você veio,
acompanhou-me; porte-se bem que não terá de arrepender-se.”
– O que era
esse tipo, além de guarda nacional?
– Era
servente do Senado.
– Que
magnata!
– Não te rias. À hora
marcada, saímos, eu e Lulu, para a ronda. Deu-me cinco mil-réis, para despesas;
mas não os pude gastar em uma feijoada, porque o aguerrido Lulu não me dava
tempo. Andamos pelas ruas e, à noite, fomos aos clubes, onde pude beber e comer
à vontade. No domingo foi a mesma coisa e já tinha ganho a intimidade de Lulu,
a ponto de bebermos os nossos calistos juntos. Na segunda-feira, deu-me licença
de ir até em casa; e eu que já estava ensoberbado de ser guarda nacional, fui
de farda, facão e tudo! Quando cheguei ao Largo do Rio Comprido, saltei para
tomar alguma coisa. Topei logo com um conhecido que, surpreendido e cheio de
espanto, me disse: “Valentim! Que é isso? Você pode ser ‘pegado’!” “Por quê?”
“Ninguém se pode fantasiar com os trajes militares do país.” Mal tinha dito
isto, quando fui preso imediatamente por um polícia que me levou à delegacia
onde não me quiseram ouvir e me meteram no xadrez até quarta-feira de cinzas.
Está em que deu a Guarda Nacional e como foi o meu carnaval, naquele ano.
(Careta, Rio,
8-1-1921)
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