quinta-feira, 15 de julho de 2021

A escola da vila

  

Para quem já tivesse visto o mundo, a Vila do Coroatá devia ser feia, atrasada e pobre. Mas, para mim, que tinha vindo da pequenice do povoado, foi um verdadeiro deslumbramento. 

As quatro ou cinco ruas, com a maioria de casas de telha; os três ou quatro sobradinhos; as casas comerciais sempre cheias de mercadorias e de gente; as missas aos domingos; a banda de música de dez figuras; as procissões, de raro em raro, eram novidades que me deixaram maravilhado. 

A igreja acanhadinha e velha, onde os morcegos voejavam, tinha aos meus olhos um esplendor estonteante. 

A Casa da Câmara, acaçapada e pesadona, com o vasto salão onde, às vezes, se realizavam festas, parecia-me um palácio. 

O que mais me encantou foi a escola. 

Quando chegamos à vila, já haviam acabado as férias. Durante os quinze dias em que fiquei em casa curando-se das febres, eu via, da janela, as crianças passarem em grandes bandos, à hora em que terminavam as aulas. A vontade de ficar bom para misturar-me com aquela meninada alegre apressou a minha cura. 

A escola funcionava num velho casarão de vastas salas, que devia ter mais de meio século. 

Quando lá entrei, no primeiro dia, levado pela mão de meu pai, senti no peito o coração bater jubilosamente. 

Dona Janoca, a diretora, recebeu-me com o carinho com que se recebe um filho. Os meninos e as meninas, que me viram chegar, olharam-se risonhamente, como se já houvessem brincado comigo. 

Eu que vinha do duro rigor da escola do povoado, de alunos tristes e de professor carrancudo, tive um imenso consolo na alma. 

A escola da Vila era diferente da escolinha da povoação como o dia o é da noite. 

Dona Janoca tinha vindo da capital, onde aprendera a ensinar crianças. 

Era uma senhora de trinta e cinco anos, cheia de corpo, simpática, dessas simpatias que nos invadem o coração sem pedir licença. 

Havia nas suas maneiras suaves um quê de tanta ternura que nós, às vezes, a julgávamos nossa mãe. 

A sua voz era doce, dessas vozes que nunca se alteram e que mais doces se tornam quando fazem alguma censura. 

Mostrava, sem querer, um grande entusiasmo pela profissão de educadora: ensinava meninos porque isso constituía o prazer de sua vida. 

Se um aluno adoecia, ela, apesar dos afazeres, encontrava tempo pra lhe levar uma fruta, um biscoito, um remédio. 

Vivia arranjando livros, papel e lápis nas casas comerciais para os meninos paupérrimos. Se um pai se recusava a mandar o filho à escola corria a convencê-lo de que o pequeno nada seria na vida se não tivesse instrução. 

Quando chegou da capital para dirigir o grupo escolar da vila, o prédio em que as aulas funcionavam estava em ruínas e o mobiliário, de tão velho e maltratado, já não servia para nada. 

Era preciso dar àquilo um jeito de coisa decente. Mas não havia vintém. 

Ela trazia, como auxiliares, as suas irmãs Rosinha e Neném, ambas moças. 

E as três deixavam o povo surpreendido: saíram de casa em casa a pedir auxílio para as obras, fizeram rifas, organizaram festas, leilões, bazares de sorte, tudo enfim que pudesse render dinheiro.

E a vila, cochilona e desacostumada a novidades, viu, com pasmo, dona Janoca e as irmãs, de brocha e pincel nas mãos, caiando e pintando paredes.

E a velha casa, de mais de meio século, ressuscitou maravilhosamente, como os palácios surgem nos contos de fada.

Os salões, amplos e claros, abriam-se de um lado e de outro do vasto corredor, com filas de carteiras escolares, vasos de plantas, aqui e ali, e jarras de flores sobre as mesas. 

As paredes, por si sós, faziam as delícias da pequenada. De alto a baixo uma infinidade de quadros, bandeiras, mapas, fotografias, figuras recortadas de revistas, retratos de grandes homens, coleções de insetos, vistas de cidades, cantos e cantinhos do Brasil e do mundo. 

E tudo aquilo me encantava de tal maneira que eu, às vezes, deixava de brincar todo o tempo do recreio para ficar revendo paisagem por paisagem, mapa por mapa, figurinha por figurinha. 

Viriato Corrêa. Cazuza. São Paulo: Nacional, 2004. 

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