segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Um certo Capitão Rodrigo

 

“Um Certo Capitão Rodrigo” – Coleção Folha Grandes Escritores Brasileiros 5 

Toda a gente tinha achado estranha a maneira como o capitão Rodrigo Cambará entrara na vida de Santa Fé. Um dia chegou a cavalo, vindo ninguém sabia de onde, com o chapéu de barbicacho puxado para a nuca, a bela cabeça de macho altivamente erguida, e aquele seu olhar de gavião que irritava e ao mesmo tempo fascinava as pessoas. Devia andar lá pelo meio da casa dos trinta, montava um alazão, trazia bombachas claras, botas com chilenas de prata e o busto musculoso apertado num dólmã militar azul, com gola vermelha e botões de metal. Tinha um violão a tiracolo; sua espada, apresilhada aos arreios, rebrilhava ao sol daquela tarde de outubro de 1828 e o lenço encarnado que trazia ao pescoço esvoaçava no ar como uma bandeira. Apeou na frente da venda do Nicolau, amarrou o alazão no tronco dum cinamomo, entrou arrastando as esporas, batendo na coxa direita com o rebenque, e foi logo gritando, assim com ar de velho conhecido:                                     

− Buenas e me espalho! Nos pequenos dou de prancha e nos grandes dou de talho! 

Havia por ali uns dois ou três homens, que o miraram de soslaio sem dizer palavra. Mas dum canto da sala ergueu-se um moço moreno, que puxou a faca, olhou para Rodrigo e exclamou: 

− Pois dê! 

Os outros homens afastaram-se como para deixar a arena livre, e Nicolau, atrás do balcão, começou a gritar: 

− Aqui dentro não! Lá fora! Lá fora! 

Rodrigo, porém, sorria, imóvel, de pernas abertas, rebenque pendente do pulso, mãos na cintura, olhando para o outro com um ar que era ao mesmo tempo de desafio e simpatia. 

− Incomodou-se, amigo? − perguntou, jovial, examinando o rapaz de alto a baixo. 

− Não sou de briga, mas não costumo aguentar desaforo. 

− Ooi bicho bom! 

Os olhos de Rodrigo tinham uma expressão cômica. 

− Essa sai ou não sai? − perguntou alguém do lado de fora, vendo que Rodrigo não desembainhava a adaga. O recém-chegado voltou a cabeça e respondeu calmo: 

− Não sai. Estou cansado de pelear. Não quero puxar arma pelo menos por um mês. − Voltou-se para o homem moreno e, num tom sério e conciliador, disse: − Guarde a arma, amigo. 

O outro, entretanto, continuou de cenho fechado e faca em punho. Era um tipo indiático, de grossas sobrancelhas negras e zigomas salientes. 

− Vamos, companheiro − insistiu Rodrigo. − Um homem não briga debalde. Eu não quis ofender ninguém. Foi uma maneira de falar… 

Depois de alguma relutância o outro guardou a arma, meio desajeitado, e Rodrigo estendeu-lhe a mão, dizendo: 

− Aperte os ossos. 

O caboclo teve uma breve hesitação, mas por fim sempre sério, apertou a mão que Rodrigo lhe oferecia. 

− Agora vamos tomar um trago − convidou este último. 

− Mas eu pago − disse o outro. 

Tinha lábios grossos, dum pardo avermelhado e ressequido. 

− O convite é meu. 

− Mas eu pago − repetiu o caboclo. 

− Está bem. Não vamos brigar por isso. Aproximaram-se do balcão. 

− Duas caninhas! − pediu Rodrigo. 

Nicolau olhava para os dois homens com um sorriso desdentado na cara de lua cheia, onde apontava uma barba grossa e falha. 

− É da boa − disse ele, abrindo uma garrafa de cachaça e enchendo dois copinhos. 

Houve um silêncio durante o qual ambos beberam: o moço em pequenos goles, e Rodrigo dum sorvo só, fazendo muito barulho e por fim estralando os lábios. 

Tornou a pôr o copo sobre o balcão, voltou- se para o homem moreno e disse: 

− Meu nome é Rodrigo Cambará. Como é a sua graça? 

− Juvenal Terra. 

− Mora aqui no povo? 

− Moro. 

− Criador! 

O outro sacudiu a cabeça negativamente. 

− Faço carreteadas daqui pro Rio Pardo e de lá pra cá. 

− Mais um trago? 

− Não. Sou de pouca bebida. 

Rodrigo tornou a encher o copo, dizendo: 

− Pois comigo, companheiro, a coisa é diferente. Não tenho meias medidas. Ou é oito ou oitenta. 

− Hai gente de todo o jeito − limitou-se a dizer Juvenal. Rodrigo olhou para o vendeiro. 

− Como é a sua graça mesmo, amigo? 

− Nicolau. 

− Será que se arranja por aí alguma coisa de comer? 

Nicolau coçou a cabeça. 

− Posso mandar fritar uma linguiça. 

− Pois que venha. Sou louco por linguiça! 

O capitão tomou seu terceiro copo de cachaça. Juvenal, que o observava com olhos parados e inexpressivos, puxou dum pedaço de fumo em rama e duma pequena faca e ficou a fazer um cigarro. 

− Pois le garanto que estou gostando deste lugar − disse Rodrigo. − Quando entrei em Santa Fé, pensei cá comigo: capitão, pode ser que vosmecê só passe aqui uma noite, mas também pode ser que passe o resto da vida... 

(...)

****** 

* “Um Certo Capitão Rodrigo” é o terceiro episódio do romance “O Continente”, da trilogia “O Tempo e o Vento”. 

O Tempo e o Vento é uma série literária de romances históricos do escritor brasileiro Érico Veríssimo. Dividido em O Continente (1949), O Retrato (1951) e O Arquipélago (1961), o romance conta uma parte da história do Brasil vista a partir do Sul − da ocupação do Rio Grande do Sul (1745) até 1945 (fim do Estado Novo), através da saga das famílias Terra e Cambará. É considerada por muitos a obra definitiva do estado do Rio Grande do Sul e uma das mais importantes do Brasil. 

O ator Tarcísio Meira interpretou Rodrigo Cambará numa série de TV, em 1985; Francisco di Franco, no cinema, em 1971 e Thiago Lacerda, também no cinema, em 2013.

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