quinta-feira, 12 de agosto de 2021

O Saci

 Hugo de Carvalho Ramos

Por aquele tempo o saci andava desesperado. Tinham-lhe surrupiado a cabaça de mandinga. O moleque, extremamente irritado, vagueava pelos fundões de Goiás. 

Pai Zé, saindo um dia à cata dumas raízes de mandioca castela que sinhá-dona lhe pedira, topou com ele nos grotões da roça. 

O preto, abandonando a enxada e de queixo caído, olhava pasmado o negrinho que lhe fazia caretas e trejeitos, a saltar no seu único pé, e fungando terrivelmente. 

– Vancê quer alguma coisa? – perguntou pai Zé admirado, vendo agora o moleque rodopiar como o pião do ioiô. 

– Olha negro – respondeu o saci, – vancê gosta de sá Quirina, aquela mulata de sustância; pois eu lhe dou a mandinga com que ela há de ficar enrabichada, se vancê me arranja a cabaça que perdi. 

Pai Zé, louco de contentamento, prometeu. A cabaça, ele sabia-o, fora amoitada pelo Benedito Galego, um caboclo sacudido que, cansado das malandrices do moleque, a tinha roubado das grimpas do jatobá grande, lá nas roças do ribeirão. 

Pai Zé fora um dos que o tinham aconselhado, para obstar que o saci, como era o seu costume quando incomodado, tornasse a levantar as árvores da derrubada que o Benedito fizera nessas terras. 

Arrastando as alpercatas de couro cru pelas terras de sô feitor, pai Zé capengava satisfeito e inchado com a promessa do saci. 

Desde Santo Antônio que ele rondava sá Quirina, procurando sempre ocasião de lhe mostrar que, apesar dos seus sessenta e cinco anos e meio, um olho de menos e falta de dente na boca, não era negro para se desprezar assim por um canto, não – que sustância ainda ele tinha no peito para aguentar com a mulata e mais a trouxa de sá Quitéria, sua mulher, se ele tinha! 

Mas a cafuza era dura da gente convencer. Toda a eloquência que ele penosamente engendrara em seu bestunto de africano e que lhe tinha despejado pela festa de São Pedro, não teve outro resultado senão a fuga da roxa quando o encontrava. 

– Mas agora – gaguejava o preto – eu lhe amostro, que o saci é mesmo bicho bom pra deitar um feitiço. 

Com a rica dádiva dum quartilho de cachaça e meia mão do seu fumo pixuá, pai Zé alcançou do Galego a cabaça desejada. 

Sá Quitéria, porém, não via com bons olhos o afã de seu velho pela posse da milonga. E ela também sabia deitar e tirar quebranto, se sabia! Perguntassem à bruxa da nhá Benta, que desde vésperas de Reis estava entrevada na trempe do jirau; e não era o zarolho e cambaio do seu homem que a enganasse. 

Por isso, a velha ciumenta estava de tocaia, desejosa por saber do seu intento. Lá ia pai Zé, arrastando novamente as alpercatas de couro cru pelas terras de sô feitor, à entrevista do saci. Atrás dele, sorrateira, lá ia também sá Quitéria. 

O negro chegou aos grotões e chamou pelo saci, que de pronto apareceu. 

– Toma lá a sua cabaça de mandinga, seu saci, e dá-me cá o feitiço pra sá Quirina. 

O moleque desbarretou-se, tirou uma pitada grossa da cumbuca, fungou, e, entregando o resto a pai Zé, disse: 

– Dá-lhe a cheirar esta pitada, que a crioula é sua escrava. 

E desapareceu, fungando, pulando no seu único pé, nos grotões e covoadas da roça. 

– Ah, negro velho dos infernos, que conheci a tua tramoia – gritou sá Quitéria furiosa, saindo do bamburral e segurando-o pelo papo. 

E, na luta do casal, lá se foi o feitiço que o pobre pai Zé adquirira com o sacrifício dum quartilho de cachaça e a meia mão do seu bom fumo pixuá.

 Desde então, nunca mais houve paz no casal, que se devorava às pancadas; e pai Zé arrenegava sem descanso o maldito que introduzira a discórdia no seu rancho. 

– Porque, Ioiô– concluiu o preto velho que me contava esta história – a todo aquele que viu e falou com o saci, acontece sempre uma desgraça. 

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Hugo de Carvalho Ramos

(1895-1921)  

Nasceu em 21 de maio de 1895, em Vila Boa, então Capital do Estado de Goiás. Iniciou seus estudos na cidade natal e depois foi para o Rio de Janeiro, onde, em 1916, matriculou-se na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais. Em 1917, publicou “Tropas e Boiadas”,coletânea de contos que até hoje permanece como uma das obras goianas mais festejadas. Em 1920, estando prestes a concluir seu curso jurídico e, em crise de depressão, viaja ao interior de Minas Gerais e São Paulo. Em 31 de março de 1921, quando retorna ao Rio de Janeiro, suicidou-se, enforcando-se com uma corda de rede. Sempre presente na história da literatura pelo seu livro de contos, deixou poesias que mereceram inclusão no livro de Andrade Muricy sobre o Simbolismo.

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