terça-feira, 3 de agosto de 2021

Janelas da saudade

 Paulo Mendes*

Existem certos ruídos da nossa casa da infância que, por mais que o tempo passe, não saem da lembrança. Um rangido de porta, um estalido de trinco, o portãozinho de ferro se fechando, a corrente do poço, os passos do pai no oitão, as panelas da mãe ao redor do fogão a lenha. O assoalho de tábuas provocava barulhos conhecidos que, com o passar dos anos, faziam parte de nós. Era lindo escutar a orquestra da passarada quando o dia clareava, trinados e cantos de todas as frequências, graves e agudos. Há dias que acordamos e ouvimos algo que nos remete para lá, de novo, para aquele tempo já tão distante, já quase esquecido, mas que por alguma razão volta para nos dizer que a gente cresce, vive, envelhece, mas é o mesmo sempre. 

(...)

Havia sons que nunca esqueço, principalmente os da nossa velha casa. Aos domingos pela manhã, se havia sol, costumávamos abrir bem as janelas, os postigos, as venezianas, para que entrasse casa adentro o calor que irradiava do lado de fora e a energia que brotava pelos campos e pelo arvoredo. Como éramos guris e as janelas tão antigas e grandes, tínhamos dificuldade para abri-las. Passavam dias e dias fechadas, endureciam, estalavam, faziam uns barulhos estranhos, cada vez diferentes, conforme a estação do ano. Na primavera, riam; no verão, gargalhavam; no outono, gemiam; e no inverno, choravam. Pelo menos parecia ser assim, era isso que eu e meu irmão entendíamos. Será mesmo? Ah, as verdades que trazemos na alma sempre são as nossas verdades num determinado tempo e espaço, por isso, inquestionáveis. 

Nos dias de semana, acordávamos com o ranger da cama da mãe, dona Mirica, quando ela se preparava para levantar. Era rápido. Então, saltava também da minha cama de ferro, vestia ligeiro as roupas, calçava as botas de borracha e pegava o velho chapeuzinho de feltro amassado. Lavava a cara numa pequena bacia de louça, me enxugava com as velhas toalhinhas de saco de farinha, enxugava a boca com um copo de vidro esverdeado, onde tinha sal e bicarbonato de sódio, e largava quebrando geada até o potreiro para buscar as vacas leiteiras. Depois, me lavava de novo, colocava o uniforme do colégio, tomava café e saía com a pasta de cadernos e lápis para pegar o ônibus Amarelão até a cidade. Cumpri essa rotina por anos a fio, até que os anos se atropelaram e tudo mudou. Ficaram os sons familiares daquele período. Vez por outra os ouço por aí em qualquer lugar que eu ande. Então, como num passe de mágica, estou lá outra vez, abrindo portas, fechando janelas, ouvindo os apitos do trem ao longe e o berro do gado. Em sonho vejo nossa casa depauperada, fechada, mas com uma janela aberta. 

*(De Campereadas, no Correio do Povo, agosto de 2021) 

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