domingo, 25 de agosto de 2019

Obra-prima da poesia breve*



Maria remexe nos seus guardados e encontra uma velha foto em que ela e seu ex-amor dançam. Ele está falando algo que parece ser: − Te amo, Maria. Vê-lo outra vez a desconcerta e ela acaba fazendo o que fazem os bêbados da madrugada: Liga para ele, mas ele não atende. A ligação cai na secretária eletrônica. Ela, ofegante, faz confissões confusas de paixão desfeita, desliga e pensa que será engraçado, se ele tiver outra mulher. Então, recorda-se do amargo da separação, quando prometeu que nunca mais o beijaria. Seus olhos, que ainda fitam a foto, começam a marejar e ela tenta lembrar que música dançavam naquela noite. Supõe que era um bolero, em dezembro dourado e louco. Agora chorando, Maria conclui que ainda o ama, mas, como havia prometido, sabe que nunca mais o beijará. Nunca mais.

De uma crônica de David Coimbra: “Anos dourados e outro nem tanto”,
no jornal  Zero Hora, agosto de 2019

Outra versão

Outra versão

Uma mulher, de nome Maria, mexendo numa gaveta de sua casa, descobre antigas fotografias de sua mocidade. Agora, depois de longo tempo, detém-se numa em especial. Ela está dançando com um jovem muito bonito, alinhado num lindo terno de linho branco. Ele a olha embevecido. Ela, vendo melhor a foto, percebe coisas nunca havia notado antes, como perceber o olhar do rapaz que lhe parece dizer: “Te amo, Maria”. Nota, ainda, que estão felizes pelo olhar de um para o outro. O mês parece que era dezembro... A música parece que era um bolero...

Ela, pela emoção do sentimento inesperado que brota espontâneo do coração, liga emocionada para o telefone do antigo amor, deixando um recado para ele na secretária eletrônica, notando, com graça, que ele pode até estar amando outra mulher.

Começa a se imaginar ao lado do seu antigo amor, e percebe que ainda o ama. Pelo tempo longe um do outro. Chora de tristeza, mas sabe que os anos do namoro da juventude foram anos dourados, sabe que os beijos do antigo namoro nunca mais serão novamente dados. É a vida que segue...

(NSM)


Anos dourados 

1986

Antonio Carlos Jobim e Chico Buarque de Holanda

Parece que dizes:
Te amo, Maria.*
Na fotografia,
Estamos felizes.
Te ligo afobada
E deixo confissões
No gravador.
Vai ser engraçado,
Se tens um novo amor.

Me vejo a teu lado,
Te amo?
Não lembro...
Parece dezembro,
De um ano dourado.
Parece bolero,
Te quero, te quero.
Dizer que não quero
Teus beijos nunca mais,
Teus beijos nunca mais.

Não sei se eu ainda
Te esqueço de fato.
No nosso retrato,
Pareço tão linda.
Te ligo ofegante
E digo confusões
No gravador.
É desconcertante
Rever um grande amor.

Meus olhos molhados,
Insanos dezembros,
Mas quando eu me lembro,
São anos dourados.
Ainda te quero,
Bolero,
Nossos versos são banais.
Mas como eu espero
Teus beijos nunca mais,
Teus beijos nunca mais.

*A gravação original da série Anos Dourados foi feita para ser cantada por Maria Bethânia.

P.S. A gravação dessa música está na internet na voz de Chico Buarque.


Um comentário: