quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Um presente raro e de bom gosto


Quando ainda lecionava numa Escola Municipal de um bairro periférico de Porto Alegre, um aluno do noturno disse que na empresa onde ele trabalhava havia muitos livros velhos e descartados. Informou-me que um dia me daria um deles de presente. Disse-lhe que um presente, principalmente um livro, seria sempre bem-aceito por mim.

Qual não foi a minha surpresa, quando um dia ele me traz um livro velho, meio comido por traças, principalmente a capa e as bordas, mas com os textos intactos. O livro chamava-se “A Musa em Férias" (Idílios e Sátiras) de Guerra Junqueiro, de 1893! Na contracapa, havia as seguintes palavras: “Tiraram-se d´esta edição dez exemplares em papel Whatman”.

Na minha estante, esse livro é, seguramente, o mais antigo e, talvez, o mais raro. Saber que no mundo lusitano eu mais nove temos esse livro, e que no prefácio há um poema o qual transcrevo abaixo.

  
DEDICATÓRIA

Recordam-se vocês do bom tempo d´outrora,
D´um tempo que passou e não volta mais,
Quando íamos a rir pela existência fora
Alegres como em junho os bandos dos pardais?
Croava-nos a fonte um diadema d´aurora,
E o nosso coração vestido de esplendor
Era um divino abril radiante, onde as abelhas
Vinham sugar o mel na balsamina em flor.
Que doiradas canções nossas bocas vermelhas
Não lançaram então perdidas pelo ar!...
Mil quimeras de glórias e mil sonhos dispersos,
Canções sem versos,
E que nós nunca mais havemos de cantar!
Nunca mais! nunca mais! Os sonhos e a esperanças
São áureos colibris das regiões da alvorada,
Que buscam para o ninho os peitos das crianças.
E quando a neve cai já sobre a nossa estrada,
E quando o inverno chega à nossa alma, então
Os pobres colibris, coitados, sentem frio,
E deixam-nos a nós o coração vazio,
Para fazer o ninho em outro coração.
Meus amigos, a vida é um sol que chega ao cúmulo,
Quando cantam em nós essas canções celestes;
A sua aurora é o berço, e o seu ocaso é o túmulo:
Ergue-se entre os rosais e expira entre os ciprestes.
Por isso, quando o sol da vida já declina,
Mostrando-nos ao longe as sombras do poente,
É-nos doce parar na encosta da colina
E volver para trás o nosso olhar plangente,
Para trás, para trás, para os tempos remotos
Tão cheios de canções, tão cheios de embriaguez,
Porque, ai! A juventude é como a flor do lótus,
Que em cem anos floresce apenas uma vez.

E como o noivo triste a quem morreu a amante,
E que ao sepulcro vai com suas mãos piedosas
Sobre um amor eterno – o amor d´um sonho só instante –
Deixar uma saudade e uma coroa de rosas;
Assim, amigos meus, eu vou sobre um tesouro,
Sobre o estreito caixão pequenino, infantil,
Da nossa mocidade, - a cotovia d´oiro
Que nasceu e morreu numa manhã d´abril! –
Desprender, desfolhar estas canções sem nexo,
Estas pobres canções, tão simples, tão banais,
Mas onde existe ainda um pálido reflexo
Do tempo que passou e que não volta mais.
    
Dezembro de 1878

Abílio Manuel Guerra Junqueiro (Freixo de Espada à Cinta a 17 de Setembro de 1850 - Lisboa, 7 de Julho de 1923) foi bacharel formado em direito pela Universidade de Coimbra, alto funcionário administrativo, político, deputado, jornalista, escritor e poeta. Foi o poeta mais popular da sua época e o mais típico representante da chamada “Escola Nova”. Poeta panfletário, a sua poesia ajudou criar o ambiente revolucionário que conduziu à implantação da República.


Foto do poeta no fim da sua vida

Longe de ti, se escuto, porventura,
Teu nome, que uma boca indiferente
Entre outros nomes de mulher murmura,
Sobe-me o pranto aos olhos de repente...

Tal aquele, que, mísero, a tortura
Sofre de amargo exílio tristemente,
A linguagem natal, maviosa e pura,
Ouve falada por estranha gente...

Porque teu nome é para mim o nome
De uma pátria distante e idolatrada,
Cuja saudade ardente me consome:

E ouvi-lo é ver eterna primavera
E a eterna luz da terra abençoada,
Onde, entre flores, teu amor me espera.

Esta poesia, de um autor desconhecido, foi posta no frontispício do livro “Os Simples” de Guerra Junqueiro, o grande poeta português.



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