sábado, 10 de agosto de 2019

Tio Anastácio

Jayme Caetano Braun


01

Entre a ponte e o lajeado,
Na venda do Bonifácio,
Conheci o tio Anastácio:
Negro velho já tordilho,
Diz que mui quebra em potrilho,
Hoje, pobre, despilchado,
De tirador remendado
Num petiço douradilho.

03

A tropilha dos invernos
Tinha lhe dado uma estafa,
E aquela meia garrafa,
Dentro do cano da bota,
Contava a história remota
Do negro velho curtido,
Que os anos tinham vencido
Sem diminuir na derrota.

05

Carneava uma rês, num upa,
Com toda calma e perícia!
Reservado e sem malícia,
Negro de toda confiança,
Bem quisto na vizinhança,
Dava gosto num rodeio,
De pingo alçado no freio,
Pealando de toda trança.

07

Caboclo de qualidade,
Que não corpeava uma ajuda,
Na encrenca mais peliaguda
Sempre conservava o tino.
Garrucha boca de sino,
Carregada com amor,
E um facão mais cortador
Do que aspa de boi brasino!
  
09

Ficou sendo um desses índios
Que se encontra nos galpões,
E, ao derredor dos fogões,
Fala aos moços, com paciência,
Do que aprendeu na existência,
Ao longo dos corredores,
Alegrias, dissabores...
Curtido pela experiência!

11

Por isso é que nos bolinchos
Só se alegrava bebendo,
Como se cada remendo
Da velha roupa gaudéria
Fosse uma sangria séria
Por onde o sangue do pago
Se esvaísse, trago a trago,
Por ver tamanha miséria!

13

E agora que estás vivendo
Na estância grande do céu,
Engraxando algum sovéu
Pra o patrão velho buenacho,
Não te esquece aqui de baixo,
Onde a lo largo ainda existe
Muito xiru, velho triste,
Como tu, criado guacho!
Como tu, tio Anastácio!
02

Quem visse o tio Anastácio
Num bolincho de campanha,
Golpeando um trago de canha,
Oitavado no balcão,
Tinha bem logo a impressão
Que aquele mulato sério
Era o Rio Grande gaudério,
Fugindo da evolução!

04

Mulato criado guacho,
Nos tempos da escravatura,
Aquela estranha figura
Na vida passara tudo.
Ginetaço macanudo,
Já desde o primeiro berro,
Saía trançando ferro
No potro mais colmilhudo!

06

Tinha cruzado as fronteiras,
Da Argentina e do Uruguai,
Andara no Paraguai
Peleando valentemente,
E voltara, humildemente,
Como tantos índios tacos
Que foram vingar nos chacos
A honra da nossa gente!

08

Porém, depois que os janeiros
Foram ficando à distância,
Andou, de estância em estância,
E foi vivendo de changa,
Repontando bois de canga,
Castrando com muita sorte
E, em tempos de seca forte,
Arrastando água da sanga.
  
10

Tio Anastácio prʼaqui,
Tio anastácio pra lá,
Mandado mesmo que piá
Por aquela redondeza,
Nos remendos da pobreza,
Entrava e passava inverno
Como um tronco só no cerno
Pelegueando a natureza!

12

E até parece mentira,
Negro velho de valor!
Morreste no corredor,
Como matungo sem dono.
Não tendo neste abandono,
Ao menos um companheiro,
Que te estendesse o baixeiro
Para o derradeiro sono!





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