(Uma homenagem ao outro)
Gilberto Schwartsmann*
Eu
jamais imaginaria que viveríamos, em pleno 2020, uma nova peste como a tão bem
descrita na literatura por Giovanni Boccaccio, em seu “Decameron”, no século
XIV. Em meus sonhos, ao contrário da peste real, a minúscula e viral criatura,
invisível aos olhos, mas perceptível ao coração, ao integrar-se à matéria, não
assustaria ninguém. Montaigne o chamaria vírus “Alii”, uma homenagem ao
“outro”, no latim.
E
aqueles que o vírus infectasse, fossem pessoas, animais, plantas ou países,
sofreriam uma súbita inversão de perspectiva − tornar-se-iam instantaneamente
empáticos. Fosse homem, ele se sentiria mulher. Fosse mau, tornar-se-ia
generoso. Fosse preconceituoso, transformar-se-ia num ser aberto às diferenças.
E se fosse avarento, ficaria indiferente aos bens materiais.
A
pandemia faria com que uma pessoa pudesse assim ver o mundo segundo o olhar do
outro, dando à humanidade a oportunidade de uma reaproximação. Surgiria uma
nova fraternidade de infectados. É claro que meu vírus só faria conversões
quando estas produzissem como resultado algo melhor, jamais o contrário.
Entre
animais, um predador atacaria suas presas com as patas abertas em forma de
abraço. Entre plantas, os polens de uma espécie fecundaria as demais,
produzindo combinações de belezas e perfumes inimagináveis. Numa perspectiva
geopolítica, fosse um país liderado por um tirano, este país passaria a amar a
liberdade e a respeitar a democracia. Fosse uma terra habitada por retrógrados,
as pessoas perderiam seu medo e passariam a adorar o novo.
Veríamos
realizada a utopia do respeito às diferenças e da tolerância entre os seres
humanos. E os infectados nunca mais julgariam os outros sem conhecê-los
pessoalmente. Coisas como cor da pele, credo religioso ou opinião política não
seria mais motivo de inimizade ou afastamento. Os indivíduos seriam julgados
por seus valores e grandeza das suas almas.
Haveria
uma cumplicidade cósmica − como a minha e do cosmonauta Yuri Gagarin. O vírus
“Alii” mataria a pobreza, a desigualdade e a injustiça. E se replicaria nos
corações doces e amorosos com enorme intensidade. Ao atingir uma população, ele
simplesmente eliminaria os solitários, pois todos acabariam amados por alguém.
Poderia demorar alguns dias, mas até os feios, os rabugentos e os desajeitados
encontrariam sua alma gêmea.
Nossa
peste não seria uma doença, mas uma esperança. Um alento de que, em princípio,
todos os seres humanos seriam recuperáveis para a felicidade. E não
necessitaríamos vacinas ou terapêuticas, pois as infecções seriam sempre
benéficas. E quando o clima mudasse, surgisse a primavera, e viesse a fase de
contágio, a humanidade entraria em êxtase, só em pensar que uma nova carga de
amor estaria por chegar.
*Médico
e escritor.
(Correio do Povo, julho de 2020)
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