terça-feira, 7 de julho de 2020

Eu coronavírus

(Uma homenagem ao outro)

Gilberto Schwartsmann*


Eu jamais imaginaria que viveríamos, em pleno 2020, uma nova peste como a tão bem descrita na literatura por Giovanni Boccaccio, em seu “Decameron”, no século XIV. Em meus sonhos, ao contrário da peste real, a minúscula e viral criatura, invisível aos olhos, mas perceptível ao coração, ao integrar-se à matéria, não assustaria ninguém. Montaigne o chamaria vírus “Alii”, uma homenagem ao “outro”, no latim.

E aqueles que o vírus infectasse, fossem pessoas, animais, plantas ou países, sofreriam uma súbita inversão de perspectiva − tornar-se-iam instantaneamente empáticos. Fosse homem, ele se sentiria mulher. Fosse mau, tornar-se-ia generoso. Fosse preconceituoso, transformar-se-ia num ser aberto às diferenças. E se fosse avarento, ficaria indiferente aos bens materiais.

A pandemia faria com que uma pessoa pudesse assim ver o mundo segundo o olhar do outro, dando à humanidade a oportunidade de uma reaproximação. Surgiria uma nova fraternidade de infectados. É claro que meu vírus só faria conversões quando estas produzissem como resultado algo melhor, jamais o contrário.

Entre animais, um predador atacaria suas presas com as patas abertas em forma de abraço. Entre plantas, os polens de uma espécie fecundaria as demais, produzindo combinações de belezas e perfumes inimagináveis. Numa perspectiva geopolítica, fosse um país liderado por um tirano, este país passaria a amar a liberdade e a respeitar a democracia. Fosse uma terra habitada por retrógrados, as pessoas perderiam seu medo e passariam a adorar o novo.

Veríamos realizada a utopia do respeito às diferenças e da tolerância entre os seres humanos. E os infectados nunca mais julgariam os outros sem conhecê-los pessoalmente. Coisas como cor da pele, credo religioso ou opinião política não seria mais motivo de inimizade ou afastamento. Os indivíduos seriam julgados por seus valores e grandeza das suas almas.

Haveria uma cumplicidade cósmica − como a minha e do cosmonauta Yuri Gagarin. O vírus “Alii” mataria a pobreza, a desigualdade e a injustiça. E se replicaria nos corações doces e amorosos com enorme intensidade. Ao atingir uma população, ele simplesmente eliminaria os solitários, pois todos acabariam amados por alguém. Poderia demorar alguns dias, mas até os feios, os rabugentos e os desajeitados encontrariam sua alma gêmea.

Nossa peste não seria uma doença, mas uma esperança. Um alento de que, em princípio, todos os seres humanos seriam recuperáveis para a felicidade. E não necessitaríamos vacinas ou terapêuticas, pois as infecções seriam sempre benéficas. E quando o clima mudasse, surgisse a primavera, e viesse a fase de contágio, a humanidade entraria em êxtase, só em pensar que uma nova carga de amor estaria por chegar.

*Médico e escritor.

(Correio do Povo, julho de 2020)

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