segunda-feira, 6 de julho de 2020

Na porteira

Paulo Mendes


Carrego comigo a ideia de que as porteiras se fecham, mas também nos abrem o caminho para o mundo. Minha mãe dizia: “olha, meu filho, quando Deus fecha uma porta, Ele abre duas janelas”. Eu via assim. Quando era bem guri, tínhamos um portãozinho de ferro, que se quebrou quando um boi brabo se desgarrou de uma tropa e entrou intempestivamente em nosso pátio. Depois que a mãe abriu o bolicho, derrubaram a cerca da frente. Primeiro colocaram uns varões de eucaliptos, mais tarde deixaram aberto mesmo, facilitando a chegada dos clientes, para que pudessem atar os cavalos nas tramas ao lado da porta da venda. Lembro ainda que o pai se preocupava muito com as porteiras das pequenas lavouras que fazia, de azevém, de cana, de milho e de mandioca, tudo para servir de forragem para as vacas leiteiras no inverno. Às vezes, quando esquecíamos uma delas abertas, era sermão, era briga, era promessa de surra, mas ele tinha coração brando, nunca cumpria.

Porteiras também são sinônimo de espera. “Te aguardo na porteira, tal hora.” Todos lembram, nos recados das rádios do interior, era comum, antes do advento do celular e das redes sociais, a mensagem tradicional de “fulana diz que vai para a fazenda no dia tal, favor alguém esperar na porteira, chegará no ônibus das seis horas”. Então, alguém ia com um cavalo encilhado, com uma charrete, com automóvel buscar essa pessoa que vinha da cidade. E esperava na porteira. Quantas horas um coração apertado não sofreu e bateu descompassado ao lado do grosso moirão da porteira, em vão, pela volta do amado ou da amada? Ah, meus senhores, minhas senhoras, se essas porteiras falassem, livros e livros seriam escritos de tanta coisa que se passou por essas imediações.

Quantas porteiras se abriram, quantas porteiras se fecharam por esse Rio Grande de São Pedro. E continuam se abrindo e fechando, todos os dias, deixando passar pessoas, sonho e vidas que vão e voltam. Quantas vezes abrimos uma porteira receosos, mas sem saber que ali ficaremos anos e anos? Essa porteira, no caso, se abre para um rancho lá na frente, onde está outra alma, igual à outra, que anda à espera de um abrigo. O viajante também tem sede de descansar. E as duas almas fincam morada ali e não “hay” nada que abra aquele laço de ferro que se ata depois da porteira. Porém, existem dias em que a gente fecha a porteira e se manda estrada afora, para sempre, sem olhar para trás. Depois, após muitos anos, algum de nós volta, mas daí não é mais a mesma coisa, tudo será diferente, algo se partiu, se rompeu, será diferente.

Criei-me vendo gaúchos abrindo e fechando porteiras de todos os tipos e modelos. E as enxergava como equipamento dentro de um processo de movimentos e deslocamentos. Era isso, isso e mais alguma coisa, um símbolo sutil dos espaços e das medidas, do nosso, do alheio, do conhecido, do nem tanto perceptível e até do desconhecido. Para além das porteiras está o mundo do improvável. Nas porteiras ficam vestígios de lágrimas, de tristeza sem fim, ficam as saudades emaladas de alguém que se foi no lombo de um cavalo bragado, na boleia de uma caminhoneta, de uma charrete. Ficaram até os passos delicados de quem se foi, sumindo ao longe, na tarde gris de um domingo.

(Da coluna “Campereada”, Correio do Povo,
julho de 2020)

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