sábado, 18 de julho de 2020

O Poeta e a Bailarina

O sofrimento de Alcides Gonçalves


Alcides Gonçalves, ao violão, e Lupicínio Rodrigues

(...) Alcides me contou a história de Quem há de dizer, de cujos versos é o inspirador. Ele era pianista na boate Marabá, onde tinha uma mulher, Maria Helena. Enquanto tocava, controlava, pelo espelho em frente ao piano, o movimento do salão. E dali assistia, com infinita tristeza, à sua Maria Helena assediada por mil garanhões. “Um dia, o Lupicínio chegou, olhou pra mim, olhou prum canto onde uns sete ou oito homens disputavam a Maria Helena, ficou debruçado na escada e já martelou”. Depois: “Meu camaradinha, bota uma musiquinha nesta letra aqui”:

Quem há de dizer,
Que quem vocês estão vendo,
Naquela mesa bebendo,
É o meu querido amor.

Reparem bem
Que toda vez que ela fala,
Ilumina mais a sala
Do que a luz do refletor.

O cabaré se inflama
Quando ela dança,
E com a mesma esperança,
Todos lhe põem o olhar.

E eu o dono,
Aqui no meu abandono,
Espero morto de sono
O cabaré terminar.

Rapaz, leva esta mulher contigo,
Disse me uma vez um amigo,
Quando nos viu conversar.
Vocês se amam,
O amor deve ser sagrado,
O resto deixa de lado,
Vai construir o teu lar.

Palavra, quase aceitei o conselho,
O mundo, esse grande espelho,
Foi que me fez pensar assim.
Ela nasceu com o destino da lua,
Pra todos que andam na rua,
Não vai viver só pra mim.

Alcides musicou na hora. E em seguida, tendo que ir a Nova Iorque onde o irmão (Valter Gonçalves, baterista de Glenn Miller) estava morrendo, aproveitou a passagem pelo Rio de Janeiro para procurar o amigo Francisco Alves. Encontrou-o no Jockey Club, cercado de mulheres: “Não, não me mostra agora que eu não quero saber de música!” Alcides, brabo, seguiu viagem, encontrou o irmão já morto e voltou. Corte para alguns meses mais tarde, no teatro Carlos Gomes, no Rio: um cantor da companhia de revistas da Dercy Gonçalves (que atuara há poucos em Porto Alegre) cantando Quem há de dizer. E na plateia, ouvidos atentos, o bem-informado Francisco Alves. A seguir, foi um tal de mandar cartas pro Sul, pedidos suplicantes pela música, que Alcides atendeu, mas só tempos depois: estava assim vingado da esnobação do amigo Chico Viola.

(Do livreto “Lupicínio Rodrigues”, de Mário Goulart)

Alcides Gonçalves:

1º/10/1908, Porto Alegre, RS − 9/1/1987, Porto Alegre, RS.

P.S. Esta música está na internet na voz de Nélson Gonçalves.


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