quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Ajuste de contas

Humberto de Campos


A vida de Mariano Pereira Barbosa corria serena, sem preocupações, sem sustos, sem contrariedades, quando o destino lhe pôs no caminho aquela armadilha: uma luta do João Salomão, celerado destemido, com o barbeiro Felisberto Sampaio do “Salão Fluminense”. Mais forte que o outro, Salomão conseguira desarmar o adversário, passando-lhe a própria navalha, depois, cinco vezes pelo peito, pela barriga, pelas espáduas, pelo pescoço. Arrolado como testemunha, Mariano fez enorme carga ao criminoso. E de tal forma que este, ao receber a sentença de quatro anos de prisão, se voltou no banco dos réus para o seu acusador, ameaçando-o, olhos fuzilantes, a mão aberta no seu rumo:

− Deixa-te estar. Quando eu sair, tu me pagas.

Anos depois, ia Mariano para seu emprego no Ministério da Justiça, quando, ao passar o bonde pela praça da República, viu, parado a um canto da rua, um indivíduo que não lhe parecia estranho. Atentou melhor e estremeceu: era o João Salomão, o agressor de Felisberto. Ao dar com os olhos no passageiro, Salomão reconheceu-o também, e, cara fechada, mordendo o beiço, avançou para o bonde. O veículo já ia, porém, em marcha acelerada, devendo o pacífico funcionário ministerial a essa circunstância não ter, desde logo, ajustado contas com o valentão.

Ao fim de dois dias, novo encontro. Caminhava Mariano pela Avenida Passos, quando viu, quase desembocando da rua General Câmara, o brutamontes que o seu testemunho havia levado à prisão. Ao divisá-lo, Salomão acelerou o passo. Tal foi, porém, o pavor que se apossou do pobre rapaz, que, quando o valentaço chegou á esquina, já havia ele dobrado, meio quilômetro adiante, a rua da Constituição.

A partir desse dia não teve o honrado burocrata um só momento de sossego. A cada canto de rua levava a mão ao peito, pálido, o coração aos pulos, vendo em cada indivíduo corpulento o fantasma do ferrabrás. E era trêmulo, nervoso, agitado, que exclamou, um dia, ao entrar em casa:

− Não, isto não pode continuar! Isto tem que ser liquidado, de uma vez!

− Acaba logo com isso, Mariano! Observou-lhe a esposa, Dona Ritinha, incomodada com aquela situação. − Compra um revólver e dá-lhe uma lição. Isto não é vida. Demais, tu não tens culpa: é ele que anda te perseguindo.

Bom marido, obediente às razoes da mulher, Mariano comprou a arma. Era um “Smith Wessson” de bom calibre, cabo de madrepérola, adquirido a prestações por quatrocentos e setenta mil réis. Como preço, era caro; tratando-se, porém, da sua tranquilidade, do extermínio daquele terrível pesadelo, o rapaz não olhara despesa. A paz da sua vida valia incomparavelmente mais.

Dois dias após a aquisição do revólver, estava Dona Ritinha no interior da casa, quando parou ao portão um automóvel. Correu a abrir, e recuou: era Mariano que chegava, sem chapéu, rosto vermelho, cabelo alvoroçado, paletó em frangalhos, camisa sem botões, colarinho para um lado, gravata para outro.

− Que é isso, Mariano? Que foi meu Deus?... exclamou a pobre senhora, aflita, torcendo as mãos.

Mariano quase não podia falar. Fez, porém, um esforço, e informou, cortando as palavras:

− Está tudo... liquidado!... Estamos... quites!

− Mataste-o?... − gritou a desgraçada, recuando, os olhos fora das órbitas.

− Não! − informou o marido, ansiado.

E abanando-se com a mão, sem fôlego:

− Já apanhei!

*****

(Do livro “A Bacia de Pilatos”, de Humberto de Campos)


Humberto de Campos (Humberto de Campos Veras), jornalista, crítico, contista e memorialista, nasceu em Miritiba, hoje Humberto de Campos, MA, em 25 de outubro de 1886, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 5 de dezembro de 1934.

Terceiro ocupante da Cadeira 20, eleito em 30 de outubro de 1919, na sucessão de Emílio de Menezes e recebido pelo Acadêmico Luís Murat em 8 de maio de 1920.



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