quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Quem cai na dança, não se “alembra” de mais nada

Anônimo (folclore popular)


Assim se costuma dizer, e é bem certo. Ora, eu lhe conto: uma vez um capitão soube que muitos praças de sua companhia estavam num cateretê ferrado, longe do quartel, bebendo, dançando, brigando, pintando os sete demônios.

Chamou a ordenança e mandou buscar a soldadesca. Mas, o camarada em lá chegando, vendo que o pagode estava mesmo bom, com cada cabocla xodó, de trazer água na boca, e com um violeiro que botar no verso e no ponteá não havia outro − esqueceu-se da ordem, e caiu também na dança.

O capitão cansado de esperar e vendo que nem os praças, nem o ordenança voltavam, chamou o cabo e o mandou atrás do pessoal. Mas, o cabo foi, e aconteceu a mesma coisa: caiu na dança, e também não voltou. O capitão já estava ardendo de raiva. E vai daí, mandou o furriel. Mas o furriel fez o mesmo: caiu na dança, e era um dia...

O capitão queimava. Estava mesmo para arrancar as barbas de bode. E mandou o sargento, com ordem de trazer todo aquele povo na chincha.

Mas, o sargento não era de ferro... e vendo tanta mulata de pega pra saí, entrou na roda: Eta! Rapaziada boa!

O capitão, brabo que nem cobra na hora da queimada, chispou o alferes em busca da negrada.

Mas o alferes − que havia de fazer? Era dos tais que não podem ver defunto sem chorar, e caiu na pândega, com os galões e tudo. E espera pra lá, capitão do inferno!

E o capitão apois mandou que o tenente trouxesse tudo de cambulhada, e, já sabia, trinta por sessenta na canalha.

E vai o tenente pegou da espada e foi bufando por ali afora, que parecia um raio.

Mas, então a coisa é que estava mesmo boa. Eta sapateado de remelexo! E o tenente deu a espada pru cabo e... entra, Juca! Aquilo ia correndo trinta por um mês, que era um regalo.

A corneta tocou, mas, nada! Ninguém apareceu na revista da companhia. Então é que o capitão quase tira as calças e pisa nelas. E resolveu ele mesmo ir buscar a rapaziada. Havia de pegá-la pra Judas! Riscou nos calcanhos, como caititu na trilha com cachorrada atrás...

Mas chegando ao pagode... Eh! Maria Chica danada pra dançar! Quando ela avistou o capitão, fez uma chamada com o lencinho bordado, estalou os dedinhos pra banda dele e o bicho entrou na dança, como sapa n′água.


Fechou a roda. A companhia inteira dançava que era uma gostosura. E o violeiro então pegou a cantar:

Venha ver, ó minha gente,
Como é boa esta função.
Viola, dança e mulata
Prende inté seu capitão.

No outro dia o tenente perguntou ao oficial:

− Pronto, meu capitão: quantas cadeias pra negrada?

− Deixa disso, tenente. Quem cai na dança, não se alembra de mais nada...

E pegaram a rir, e tudo acabou em santa paz.

*****

(Do livro “Aquarelas do Brasil – Contos da Nossa Música Popular”,
de Flávio Moreira da Costa.


Um comentário:

  1. Dançar é se transportar com o corpo para momentos mágicos.
    A dança renova, cura, alegra , é uma descarga de adrenalina prazerosa.

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