sexta-feira, 9 de novembro de 2018

O Senhor Patriota*



Por João do Rio**

Encontrei ontem o Patriota. O Patriota é um homem considerável. Ninguém sabe por que o cerca um tão curioso prestígio, mas ninguém lhe nega a grande consideração a quem têm direito personalidades de monta. Conheço-o há muito tempo. De físico varia às vezes. É em certos momentos jovem, com a cara suarenta, o cabelo por cortar, o olhar cintilante. Em outros surge velho, de grandes barcas, brandindo o guarda-chuva. Quase sempre, porém, aparenta ter de quarenta a cinquenta anos. Mas o seu moral não varia como não variam as roupas, que segundo o filósofo têm uma secreta correspondência com o moral. Veste mal, muito mal. Parece esfregado d’óleo tão reluzente está, e com dignidade, com ênfase, como um profeta clama em favor da pátria.

É no país inteiro o único homem que compreende o patriotismo sem interesse e ama verdadeiramente o Brasil. Como? Sabendo tudo sempre péssimo e clamando por medidas de extrema violência. Depois de ouvi-lo – e toda gente já o ouviu – ninguém se atreve a considerá-lo menos que intangível, porque para eles todos são perdidos, devassos e desonestos, ninguém ousa pensar no progresso do país porque ele o corta com o gládio negro do impossível; ninguém tenta uma palavra que não seja de aplauso às suas ideias porque ele fala como inspirado por um poder superior. É radical, é esplêndido, é divino.

É o único homem que pensa sempre da mesma forma, o único homem coerente porque pensa sempre mal dos outros homens, das outras coisas, só compreendendo uma intenção boa e honesta: a própria (...) Não há um homem que preste, não há um ato de governo que não seja considerado um verdadeiro desastre para a causa pública. O Brasil, que ainda não se bateu com todos os países dos quais já devia ter saído vencedor, é levado à ruína pelos seus estadistas, uns ladravazes desavergonhados.

Então a cidade iluminada à luz elétrica?

– Diz os estrangeiros, Sr. Patriota, que é a cidade mais iluminada do mundo.

– Também com tantos ladrões, quanto mais luz, melhor. Vejo, porém nisso uma verdade.

– Qual, Sr. Patriota?

– As ladroeiras da Light. As batotas do governo, essa miséria de nossos governantes...
  
(De Vida Vertiginosa, reunião de crônicas, 1911)

*Publicado originalmente na edição 893 de CartaCapital, com o título “O Rio do João”.


**João do Rio, pseudônimo de João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto (Rio de Janeiro, 5 de agosto de 188123 de junho de 1921). Foi um jornalista, cronista, tradutor e teatrólogo brasileiro. Era membro da Academia Brasileira de Letras.



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