segunda-feira, 9 de setembro de 2019

A sonoridade da palavra

E o verbo se fez carne


Arte de Auracebio Pereira

Quem não o conhece ou o vê de longe nem acredita que o professor, doutor, escritor, ensaísta e multifuncional Luís Augusto Fischer seja portador de um bom humor contagiante. No Guia de Sobrevivência do Gaúcho (Editora Belas Letras, 2014), ele nos diverte muito com uma brincadeira séria. São dicas preciosas para gaúchos e não gaúchos de todas as querências sobreviverem sem passar vergonha ao encarar a Santíssima Trindade gaudéria: churrasco, chimarrão e causo. Na estreia da Degusta*, separamos o texto sobre a origem do churrasco. Te arremanga e lê!

Chur-ras-co. A sonoridade da palavra já faz o vivente lamber os beiços imaginando aquela lasca de carne quente aterrissando no prato, a costela sendo desnudada a dentadas, o espeto recém-tirado do fogo desfilando na frente dos olhos. Ahhh... Pois uma das origens atribuídas à palavra vem daí mesmo. O dicionário da Academia Espanhola sugere que “churrasco” tem uma raiz onomatopeica, ou seja, proveniente do som que a coisa faz, justamente daquele chiado gostoso da gordura na brasa. Shhhhuuu... Rasssssk... Mais ou menos por aí.

A origem mais provável, porém, não é tão poética, digamos assim. Vem do elemento fogo, sem o qual, obviamente, não há churrasco. Tudo começa com os termos pré-românicos su (fogo) e harra ou karra (chama), sinônimos que, combinados, geram o vocábulo basco sukarra (fogo, chamas, incêndio; mais recentemente, significando também febre). Daí vem o verbo socarrar, em espanhol, que quer dizer queimar, tostar a superfície de algo ou mesmo carbonizar. No dialeto espanhol falado em Múrcia e Alemeria, socarrar vira chuscarrar. E na Andaluzia, talvez até embaralhado por alguns goles a mais ou proferido por um ancestral do Chaves (“Com é? E como eu disse?”) assenta como churrascar.

Põe-se então o saboroso verbo na mala dos colonizadores espanhóis, espraia-se a palavra pela América platina e, cruzando a fronteira, churrascar vai parar na boca dos gaúchos brasileiros e se consolida na forma pós-verbal: churrasco. Literalmente, o verbo se fez carne − e ainda se tornou programa sagrado nos domingos. Consagrado pelos gaúchos, portanto, o churrasco depois ganha apelidos descolados − como “pebolim”, que compara o manejo dos espetos com o giro das hastes no jogo também conhecido com Fla-Flu (heresia!) − e, especialmente, o carinhoso e apetitoso diminutivo: churras.

* Revista Degusta Valentina

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