quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Quando a língua parou



Damaso Viegas Nóbrega

Naquela manhã uma cerração mais densa que a das chaminés das fábricas turvou a cidade. E de repente todo mundo esqueceu as palavras.

Poucos conseguiram chegar ao trabalho. Já não entendiam os letreiros dos ônibus e tomavam o bonde errado. Quem alcançava a pé os altíssimos edifícios dos escritórios tinha que subir pelas escadas porque os elevadores estavam parados. Ninguém mais sabia contar, nem ler os números dos andares para manejar o painel de controle.

Nos Correios e Telégrafos só as traças remetiam telegramas secretos dentro dos arquivos. Todos os telefones do mundo monologavam em seus cabides

Naquele dia os restaurantes não funcionaram. Os mestres-cucas, envergonhados, sem o auxílio dos tratados de culinária, pareciam mocinhas escriturarias recém-casadas à beira do fogão. Mal-e-mal sabiam cozinhar feijão e arroz.

Nos hospitais os doentes morriam mais do que sempre. As enfermeiras não compreendiam as prescrições dos médicos e os pacientes pararam de tomar os remédios. Raros médicos aparecidos, agora analfabetos, já não sabiam receitar.

Por força do hábito, estudantes foram às escolas e professores também. Pelo costume, os professores tentavam falar, e os alunos entender. Mas a única aula que saiu foi de onomatopeias. Tudo os dedicados mestres tentavam. Dona Trofozilda, catedrática em gramática, crocitava solenemente, A professora de Canto Orfeônico gorjeava em cima do piano. O diretor da escola relinchava no gabinete, e o fiscal de alunos ladrava pelos corredores.

Nas ruas o caos era total. Os motoristas choravam de raiva. Não, não era por causa do trânsito, que esse estava igual a todos os dias. É que haviam esquecidos todos os palavrões e não tinham como xingar-se uns aos outros. Alguns até consultavam dicionários de bolso na ânsia de comunicar-se. Porém, não sabiam mais ler e, mesmo que ainda soubessem, não ia adiantar, pois dicionários não registram “nomes feios”.

O pior foi à noite. Uma tristeza amarga invadiu todos os lares. Porque não podiam conversar? Não, por isso não, já que há muito tempo os familiares não conversavam mesmo; Acontece que a televisão não funcionou. Não havia scripts e, ainda que houvesse, ninguém poderia lê-los, visto que desaprenderam. Sem a telenovela, mamãe não conseguia emocionar-se e olhava indiferentemente para papai. Sem os programas de humor, não tinham por que rir e, quando não riam, estavam sempre tristes.

Aquela névoa antilinguagem envolveu todo o planeta. Em poucas semanas a civilização evaporou-se. Tudo virou de pernas para o ar. Não havia mais cavalheiros e damas – só  homens e mulheres. Logo os homens começaram a trepar em árvores e as mulheres deixaram de pintar os olhos e usar perucas.

Então os marcianos desceram. Observaram satisfeitos o resultado de sua fumacinha e disseram:

− Agora o planeta é nosso! Antes de um milhão de anos, esta macacada não faz bomba atômica outra vez.



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