terça-feira, 13 de outubro de 2020

Catando sabedoria no lixo

 

Carolina Maria de Jesus

Carolina Maria de Jesus, grande escritora brasileira, folheia livros em sua biblioteca particular, montada em seu barraco, com obras encontradas no lixo.

A escritora é autora da obra clássica “Quarto de Despejo”, livro onde conta sua experiência vivendo na pobreza.

Abaixo trouxemos um fragmento escrito pela autora, que é uma das melhores descrições sobre a fome, já narradas, na história da literatura mundial.


13 de Maio: Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o Dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos. 

...Nas prisões, os negros eram os bodes expiatórios. Mas os brancos agora são mais cultos. E não nos tratam com desprezo. Que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam felizes.

Continua chovendo. E eu tenho só feijão e sal. A chuva está forte. Mesmo assim, mandei os meninos para a escola. Estou escrevendo até passar a chuva, para eu ir lá no senhor Manuel vender os ferros. Com o dinheiro dos ferros, vou comprar arroz e linguiça. A chuva passou um pouco. Vou sair... Eu tenho tanto dó dos meus filhos. Quando eles veem as coisas de comer eles bradam:

– Viva a mamãe!

A manifestação agrada-me. Mas eu já perdi o hábito de sorrir. Dez minutos depois, eles querem mais comida. Eu mandei o João pedir um pouquinho de gordura à Dona Ida. Ela não tinha. Mandei-lhe um bilhete assim:

“Dona Ida, peço-te se pode me arranjar um pouco de gordura, para eu fazer uma sopa para os meninos. Hoje choveu e eu não pude catar papel. Agradeço, Carolina”.

...Choveu, esfriou. É o inverno que chega. E no inverno a gente come mais. A Vera começou pedir comida. E eu não tinha. Era a reprise do espetáculo. Eu estava com dois cruzeiros. Pretendia comprar um pouco de farinha para fazer um virado. Fui pedir um pouco de banha à Dona Alice. Ela deu-me a banha e arroz. Eram 9 horas da noite quando comemos.

E assim, no dia 13 de maio de 1958, eu lutava contra a escravatura atual – a fome! 

(Do blog Literafro)

Carolina Maria de Jesus foi uma das primeiras escritoras negras do Brasil e é considerada uma das mais importantes escritoras do país. A autora viveu boa parte de sua vida na favela do Canindé, na Zona Norte de São Paulo, sustentando a si mesma e seus três filhos como catadora de papéis.

 Em 1958, tem seu diário publicado sob o nome “Quarto de Despejo”, com auxílio do jornalista Audálio Dantas. O livro fez um enorme sucesso e chegou a ser traduzido para catorze línguas.

Carolina Maria de Jesus era também compositora e poetisa. Sua obra permanece objeto de diversos estudos, tanto no Brasil quanto no exterior.

 

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