quarta-feira, 28 de outubro de 2020

O vendedor de cartuchos

 

Plec! Plec!

Plec! Plec!

Plec!Plec!

Final de uma tarde outono, quando o ar é claro e limpo e os raios do sol que já se inclina para o poente, faz brilhar e rebrilhar somente um dos lados faz folhas das árvores que se recortam nítidas, uma por uma, em arrabalde distante no final da década de 50.

O menino rechonchudo, que brinca no pátio de uma das casinhas gêmeas da vila, levanta a cabeça de cabelos muito curtos, apenas um chumaço mais comprido no alto da testa, e escuta, escuta de novo e sai correndo.

- Ah! Compra, mãe... Compra! Ah! Compra.

- Sossega, menino! Tenho mais o que fazer.

- Ah! Mãe...

- Tá bom, tá bom! Vamos lá.

Ajeitando os cabelos, ela passa a mão na niqueleira e caminha na direção do portão do jardim com o pequeno saltando em volta dela.

- Moço! Moço! Vem cá.

O homem pobre, de roupas remendadas, chinelos tortos, com um boné de abas laterais enterrado até as orelhas, se vira devagar e volta. No ombro traz pendurado por uma tira de couro uma lata grande, cilíndrica, já escura por muito tempo de uso. Muito bem tampada. Na outra mão carrega um pedaço de tábua, retangular, que tem uma fenda em uma das extremidades por onde passam os dedos. A tábua é lisa e lustrosa, como se tivesse sido encerada pelas mãos que a tocam há tantos anos. No meio da tábua, na vertical, um semicírculo de arame grosso, com as duas pontas dobradas para fora; estas pontas foram engatadas em laçadas feitas por dois pregos entortados.

Quando vendedor gira a mão pra um lado e para outro este arame se move e bate de um lado e do outro da matraca produzindo o som característico que todas as crianças reconheciam: lá vem o vendedor de cartuchos!

Plec! Plec!

Plec! Plec!

Plec! Plec!

- Quanto é que está?

- Trinta centavos cada um. Mas quatro por um cruzeiro.

- Então me dê quatro.

O homem coloca o latão no chão, abre a tampa e libera o cheirinho daquela maravilha encantada. Os dedos grossos, nodosos se movem com delicadeza litúrgica para pinçar os frágeis cones de uma massa fininha, assada, ordenados uns dentro dos outros.

Entrega o pedido à senhora, que recebe também com gestos de cuidado extremo. Puxa um dos cartuchos e o alcança para o menino, que tudo acompanhou e que recebe a dádiva com veneração, como se fosse hóstia consagrada. Quebra um pedaço e coloca na boca já cheia de saliva. Que gosto divino! Ao mesmo tempo crocante e se dissolve docemente entre a língua e o céu da boca.

O homem fecha a lata com cuidado para evitar qualquer umidade; com gesto certeiro joga-a de novo sobre o ombro, recebe seu cruzeiro e vai descendo a rua, até que ele e seu “plec! plec!” desapareçam.

Maria Teresa Custódia, em 

“A Descoberta da Cidade – Memória de Porto Alegre”

Imagens da internet.


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