quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Recordando

 (1885-1890)

 Álvaro Porto Alegre*


Não poucas vezes, muitas até, tempos da infância longínqua e feliz, tempos da meninice sempre lembrada revivem como primitivamente.

Será bom recordar tempos idos? Pergunta de difícil resposta.

Saudades agridoces não deixam de aparecer. Pululam.

Quando tal me acontece, saudades me pungem a alma. Surgem a ressurgem alegrias esmaecidas pelo tempo.

Tristezas aparecem. Espinhos e rosas envolvem-me em forte e apertado abraço, uma vez que nada voltará.

Hoje tudo está modificado, senão desaparecido!

Onde os enormes bandos de passarinhos, os vistosos e alegres dragões, e os tibirros ou tíbios, que na estação hibernal tanta atenção chamavam, pousando nos Campos da Várzea ou em outros arredores da Capital?

Onde se meteram os pintassilgos canoros existentes em quantidade?

Onde os grandes bandos de canários da terra e de tico-ticos que eram vistos em tigueras de roças terminadas em fins de verão.

Onde os enormes bandos de anus, ou chopins ou vira-bostas, encantando durante grande parte das estações com a beleza da sua plumagem de azul-marinho e igualmente pela sonoridade do canto?

Para que pensar em tais coisas? Se ainda existem e andam dispersos, em número relativamente pequeno, quase nulo.

Para entristecer!

Para sofrer!

A Várzea, Campo da Redenção ou Campo do Bonfim, hoje Parque Farroupilha, está completamente transformada. Transformação assombrosa. É hoje um parque magnífico. Majestoso, bem ajardinado, cortado em lindos passeios, com atrativos por todos os lados.

Na verdade, muito bonito. Bem cuidado, mas lhe falta e não poderá ter jamais o que tinha a Várzea de antanho. Poesia. Sim poesia, a poesia da Natureza. Sim, nem de leve poderá ter aquela poesia tão encantadora e tão dominadora.

A Várzea antiga, a saudosa Várzea da minha meninice, sempre aparece com os mesmos encantos passados e as mesmas trações irresistíveis.

A Várzea antiga, com todos os seus buracos e valos irregulares, com água estagnada, malsãs, na estação estival, quase um campo bruto, espécie de potreiro com vacas e cavalos aqui, ali e além, tinha muita graça, alegrando a visão desmedidamente. Ainda mais: quero-quero em quantidade e muitas narcejas, anus e dragões encantavam a paisagem alagada.

À medida que o inverno, com todo o seu rigor, ia avançando, mais inundado ia ficando a Várzea. O espetáculo mais importante se ia tornando, com a chegada de mais bandos de quero-queros e de gaivotas. E mais lindo se ia tornando com a chegada de níveas garças, róseos colhereiros, maçaricos, socós, marias-faceiras, narcejas das grandes e das pequenas, marrecas piadeiras, biguás e outras aves aquáticas. Até joão-grandes apareciam, às vezes, dando assim mais esplendor ao que se apreciava e se admirava.

Havia poesia... Muita poesia.

Tudo passou.

Transformação completa.

Hoje há conforto pelo progresso. Um progresso avassalador apareceu, passando, impiedosamente a esponja em encantos do passado. Tudo se foi de roldão. Tudo morreu... Morreu a poesia.

Recordo tudo com a alma melancolizada.

Jamais me esqueci da Várzea e da minha meninice.

* Álvaro Porto Alegre, filho do saudoso professor Apolinário Porto Alegre, falecido aos 92 anos de idade escreveu as linhas acima pouco antes de morrer.

 

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