Uma
semana depois da morte de Elis Regina, 19 de janeiro de 1982, o cartunista
Henfil publicou na página da revista IstoÉ onde publicava suas charges e as
famosas “Cartas da Mãe”, uma homenagem à cantora. Na carta, Henfil fala sobre a
vida e a morte daquela que enfrentou o machismo em sua breve vida. A carta é
muito atual e tem muito a ver com a luta das mulheres contra a violência, a
misoginia e o machismo de que são vítimas.
Elis,
Tudo bem. Nenhuma pista sobre tua morte. Tipo crime perfeito. Precisa ver. Os
perplexos seguem as pegadas duma tal fama assassina que devora seus filhos. Os
nascidos nos anos 40 já acham que tá é passando um flautista, convocando a
geração “da gente” (Ri! Ri! Ri!). Os legistas shibatam* tuas vísceras à cata de
comprimidos e tóxicos.
Tu despistou todo mundo.
Mas eu, eu encontrei a caixa-preta. E vou abrir:
Nós homens te matamos, mulher.
Você dobrou tua voz e venceu. Dobrou teus negócios e venceu. Dobrou tua
consciência política e venceu.
Quis ser mulher livre e perdeu…
Nós
homens te exigimos alta, linda e gostosa. Nós homens te espancamos a murros e
pontapés uma, duas, de dez vezes. Nós homens te obrigamos a lavar roupa e
cozinhar pra nos sustentar. Nós homens te forçamos a se humilhar diante do teu
povo, cantando de joelhos o hino nacional. Aí, nós homens, sem perguntar, te
enterramos no cemitério dos mortos-vivos do Caboco Mamadô. Nós homens te
exibimos
E você só queria namorar nós
homens.
Mas nós homens não conseguimos namorar uma mulher livre.
Perplexos, quarentões e médicos-legistas!
Podem suspender as diligências.
Tá na caixa-preta: fomos nós, homens.
27.1.1982
*
Harry Shibata, médico legista do tempo da ditadura. Em 1982, enquanto diretor
do Instituto Médico Legal de São Paulo, foi quem assinou o laudo contendo a
causa mortis da cantora Elis Regina. Nele, constava que ela tinha morrido em
consequência de uma intoxicação provocada por bebida alcoólica e cocaína.
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