Hugo de Carvalho Ramos*
Abrandando a canícula pelo virar da tarde, abandonou a rede de imbira onde se entretinha arranhando uns respontos na viola, após farta cuia de jacuba de farinha de milho e rapadura que bebera em silêncio, às largas colheradas, e saiu ao terreiro, onde demorou a afiar numa pedra piçarra o corte da foice.
Era pelo domingo, vésperas quase da colheita. O milharal estendia-se além, na baixada das velhas terras devolutas, amarelecido já pela quebra, que realizara dias antes, e o veranico, que andava duro na quinzena.
Enquanto amolava o ferro, no propósito de ir picar uns galhos de coivara no fundo do plantio para o fogo da cozinha, o Janjão rondava em torno, rebolando na terra, olho aguçado para o trabalho paterno.
− Não se esquece, o papá, dos filhotes de periquito que ficavam lá no fundo do grotão, entre as macegas espinhosas de “malícia”, num cupim velho do pé de maria-preta. Não esquecesse...
O roceiro andou lá pelos fundos da roça, a colher uns pepinos temporões, foi ao paiol de palha de arroz mais uma vez avaliando com a vista se possuía capacidade precisa para a rica colheita do ano; e, tendo ajuntado os gravetos e uns cernes de coivara, amarrava o feixe e ia já a recolher caminho de casa, quando se lembrou do pedido do pequeno.
− Ora, deixassem lá em paz os passarinhos.
Mas naquele dia assentava o Janjão a sua primeira dezena tristonha de anos e, pois, não valia por tão pouco amuá-lo.
O caipira pousou a braçada de lenha, encostando-a à cerca do roçado; passou a perna por cima e, pulando do outro lado, as alpercatas de couro cru a pisar forte o espinharal ressequido que estralejava, entranhou-se pelo grotão − nesses dias sem pinga dágua − galgou a barroca fronteira e endireitou rumo da maria-preta, que abria ao mormaço crepuscular da tarde a galharada esguia, toda tostada, desde a época de queima, pelas lufadas de fogo que subiam da malhada. Ali mesmo, na bifurcação do tronco, assentada sobre a forquilha da árvore, à altura do peito, escancarava a boca negra para o nascente a casa abandonada dos cupins, onde um casal de periquitos fizera ninho essa estação.
O lavrador alçou com cautela a destra calosa, rebuscando lá por dentro os dois borrachos. Mas tirou-a num repente, surpicadela incisiva, dolorosa, rasgara-lhe por dois pontos, vivamente, a palma da mão.
E enquanto olhava admirado, uma cabeça disforme, oblonga, encimada à testa duma cruz, aparecia à aberta do cupinzeiro, fitando-o persistente, com seus olhinhos redondos, onde uma chispa má luzia malignamente...
O matuto sentiu uma frialdade mortuária percorrendo-o ao longo da espinha...
Era uma urutu, a terrível urutu do sertão, para a qual nem a mezinha doméstica, nem a dos campos, possuíam salvação...
− Perdido... completamente perdido...
O réptil, mostrando a língua bífida, chispando as pupilas em cólera, a fitá-lo ameaçador, preparava-se para novo ataque ao importuno que viera arrancá-lo da sesta. O caboclo, voltando a si do estupor, num gesto instintivo, sacou da bainha o largo “jacaré” inseparável e amputou-lhe a cabeça dum golpe certeiro.
Então, sem vacilar, num movimento inda mais brusco, apoiando a mão molesta à casca carunchosa da árvore, decepou-a noutro golpe, cerce quase à juntura do pulso.
E enrolando o punho prendido. É que uma mutilada na camisola de algodão, que foi rasgando entre os dentes, saiu do cerrado, calcando duro, sobranceiro e altivo, rumo de casa, como um deus selvagem e triunfante apontando a mata companheira, mas assassina, mas perfidamente traiçoeira...
Publicado
em 1917, o conto “Ninho de Periquitos” é considerado a obra-prima de Hugo de
Carvalho Ramos.
*Hugo
de Carvalho Ramos (Vila Boa de Goiás, atual Cidade de Goiás, 21 de maio de 1895
− Rio de Janeiro, 12 de maio de 1921) foi um contista e poeta brasileiro.
No
dia 12 de maio d 1921, em uma residência do bairro da Tijuca, na capital
fluminense, o corpo do escritor, que contava com 26 anos de idade, foi
encontrado no quarto. Ele se enforcara. A versão mais aceita é que Hugo nunca
superou a morte do pai e caiu
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