quarta-feira, 12 de agosto de 2020

O Cusco Piloto

 Por Dioclécio Lopes

Ilustração de Gilmar Fraga

Piloto chegou à Estância do Minuano pelas mãos benevolentes de João Furtuoso, há, pelo menos, uma dúzia de anos, como contou certa vez Tenório.

João recém havia chegado ao bolicho de um tal de Florêncio Flores. Voltava de uma longa tropeada lá pras bandas do Passo Feio, onde fora entregar uma tropa mui linda ao estancieiro Inácio Dutra, tido como muito muquirana e de má bebida.

Furtuoso avisou o bolicheiro que estavam com as gargantas secas e os estômagos no espinhaço. Homem solícito, de imediato mandou que lhes servisse uma canha de alambique próprio, enquanto caprichava na linguiçada acompanhada de um feijão mexido na frigideira lustrosa.

Não demorou muito para que um cusquinho rengo e subtraído pela fome viesse lhe suplicar comida próximo ao gentario espalhado pelas mesas do recinto. Não foram poucas as vezes que Florêncio Flores tentou enxotar o inconveniente visitante com gritos de “já, já pra fora!”, “onde já se viu!?”, repicando um dos pés no chão, simulação inútil à perseguição ao animalzinho indefeso.

Mas o guaipeca escorraçado, volta e meia metia a cara na porta do bolicho, exibindo dois olhos graves e tristes, esmolando a atenção dos viventes que espantavam a fome a fartas garfadas da comida fumegante.

Diz o Tenório que a cena amoleceu o coração de João Furtuoso como alguém pialado por uma paixão devastadora. Apiedado do estado miserável do cusquinho, colocou-o com todo o jeito sobre os arreios e o conduziu, quieto, até a Estância do Minuano. Curou-lhe as feridas e a perna estropiada, deu-lhe comida e tratamento que, aliás, todos os bichos têm direito de receber dos seus donos. Mais: deu-lhe um nome − Piloto.

E, no repente, criou-se uma amizade como entre gente. O cusco não desgruda de João em momento algum. Seja nas desgastantes tropeadas, seja nas horas de folga, fica ele ali, ao pé do seu dono, observador atento de seus movimentos. E na suposta iminência de qualquer perigo ao peão, fica o cusquinho a rosnar, a latir, a enfurecer-se até, numa comovedora gratidão, incompreensível para quem desconhece o que é lealdade.

Credo, tchê!, isto é que é amizade, hein? − disse Tenório, voz entrecortada, apalpando a aba do chapéu, enquanto João Furtuoso e Piloto já alcançavam a porteira para mais uma das lides na Estância.

                                                      *****

O jornal Zero Hora publicou a série de contos “Causos de João Furtuoso”, em comemoração à Semana Farroupilha (de 2009). Personagem criado por Dioclécio Lopes, João Furtuoso é protagonista das narrativas ambientadas na zona rural, mais precisamente em um lugar chamado Bom Jardim, palco da difusão dos costumes, dos afazeres e da linguagem utilizada pelas gentes que marcam e mantêm acesa a cultura gaúcha.

Glossário

Bolicho: O mesmo que bodega, pequeno armazém de secos e molhados, variação de boliche.

Tropeada: Ato de tropear, de conduzir uma tropa.

Muquirana: Inseto parasita do corpo humano. Indivíduo maçante, intolerante.

Bolicheiro: Aquele que explora um bolicho. O mesmo que bodegueiro.

Cusquinho: Diminutivo de cusco (cão).

Rengo: Diz-se do animal que claudica de uma pata traseira.

Gentario: Grande porção de gente.

Guaipeca: O mesmo que cusco. Cão pequeno de raça ordinária.

Pialado: Laçado.

 

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