terça-feira, 12 de setembro de 2017

Canção da mão esquerda



- Sou gêmea da mão direita,
O mesmo ar nos circunda:
Mas ela alçou-se a morgada
E eu fiquei filha segunda.

Nascemos no mesmo leito,
Na mesma noite estrelada,
Porém, sendo eu irmã sua.
Ela é ama e eu sou criada.

Eu sou bem criada dela,
Que me está sempre a chamar
Se os sapatos calçar deseja,
Se os botões quer os fechar.

Ela é fidalga; eu, plebeia,
Assim o quis nossa estrela:
Coisas mesquinhas são minhas
E as coisas belas são dela.

Ela abençoa e agradece,
Leva à boca a sopa quente,
Dá a esmola, colhe a palma
E corta a flor rescendente.

E ela que no Parnaso
Acorda a lira com o pletro,
Que no combate alça a espada
E no trono empunha o cetro.

Sobre os Santos Evangelhos
E ela sempre quem jura.
E ante o altar no casamento,
Quem se mostra e faz figura.

Faz ela o sinal da cruz,
Do dia ao principal e ao cabo,
E a mim manda-me fazer
Figas às bruxas e ao diabo!

Ela sempre em fainas nobres
E eu sempre em descansos cruéis...
Só num ponto a venço e humilho:
Anda nua e eu trago anéis!

Mas na cova acabarão
Tantas diferenças da vida:
Eu comida pelos vermes,
E ela pelos vermes comida.

Eugenio de Castro

(Do livro Canções desta negra vida)


Eugenio de Castro e Almeida (1869-1944) nasceu e faleceu em Coimbra. Foi diretor da revista Arte entre 1895 e 1896, onde colaboraram, entre outros, Verlaine e Mallarmé. É considerado o introdutor do Simbolismo em Portugal.

A obra de Eugenio de Castro pode ser dividida em duas fases: na primeira, a fase simbolista, que corresponde a sua produção poética até o fim do século XIX, Eugenio de Castro apresenta algumas características da Escola Simbolista, como o uso de rimas novas e raras, novas métricas, sinestesias, aliterações e vocabulário mais rico e musical.

Na segunda fase ou neoclássica, que corresponde aos poemas escritos já no século XX, vemos um poeta voltado à Antiguidade Clássica e ao passado português, revelando um certo saudosismo, característico das primeiras décadas do século XX em Portugal.

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