segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Incidente na casa do ferreiro

Luís Fernando Veríssimo


Pela janela vê-se uma floresta com cada macaco no seu galho. Dois ou três cuidam o rabo do vizinho, mas a maioria cuida do seu. Há também um moinho diferente, movido por águas passadas. Pelo mato, sem cachorro, passa Maomé a caminho da montanha. Para evitar que a montanha venha até ele e cause um terremoto. Dentro da casa do ferreiro, este conversa com o filho do enforcado.
– Nem só de pão vive o homem – diz o ferreiro.
– Comigo é pão, pão, queijo, queijo – diz o filho do enforcado.
– Um sanduíche: Você está com a faca e o queijo na mão. O pão não porque o diabo ainda não entregou. Mas cuidado.
– Por quê?
– Essa é uma faca de dois gumes.
Entra o cego gritando:
– Eu não quero ver! Eu não quero ver!
Atrás do cego entra um guarda com um mentiroso seguro pelo braço.
– Peguei o mentiroso, mas o coxo fugiu – anuncia o guarda.
– Eu não quero ver! – insiste o cego.
Chega um vendedor de pombas com uma pomba na mão e duas voando à sua volta. O filho do enforcado pergunta quanto custam as pombas.
– Esta na mão é 50 – diz o vendedor. – As duas voando eu faço por 30 cada uma.
– Não me mostra que eu não quero ver! – grita o cego.
O cego se choca com o vendedor de pombas, que larga a pomba que tinha na mão. Agora são três pombas voando sob o teto de vidro da casa do ferreiro.
– Esse cego está cada vez pior! – protesta o ferreiro.
O guarda informa que vai atrás do coxo e pede uma corda para amarrar o mentiroso. O filho do enforcado faz cara feia à menção da corda.
O guarda sai pela porta, mas volta em seguida dizendo para o ferreiro que um pobre quer falar com ele. Algo sobre uma esmola muito grande.
Parece desconfiado. Sai o guarda e entra o pobre.
– Olha aqui, doutor – diz o pobre. – Essa esmola que o senhor me deu, dá para desconfiar…
– Está bem. Devolve a esmola e pega uma pomba.
– Essa eu nem quero ver! – grita o cego.
Entra o mercador. O ferreiro dirige-se a ele.
– Foi bom você chegar. Me ajuda a amarrar este mentiroso com uma...
O mercador põe a mão atrás da orelha e diz:
– Hein?
– Eu não quero ver! – grita o cego.
– O quê?
– Peguei uma pomba! – grita, exultante, o pobre.
– Não me mostra – pede o cego.
– Como? – diz o mercador.
– Agora é só arranjar um espeto de ferro que eu faço um galeto – diz o pobre.
– Infelizmente, aqui em casa só tem espeto de pau – informa o ferreiro. E, esquecendo-se da presença do filho do enforcado, pergunta:
– Essa corda, vem ou não vem?
O filho do enforcado sai da casa, furioso. Do lado de fora atira uma pedra no telhado de vidro. Duas pombas saem voando pelo buraco do teto. Pela porta de trás, de tapa-olho, entra o último.
– Como é que você entrou aqui? – pergunta o ferreiro.
– Arrombei a porta – responde o último.
– Vou ter que arranjar uma tranca para essa porta arrombada. De pau, claro.
– Vim avisar que já é verão ‒ diz o último. – Vi não uma, mas duas andorinhas voando aí fora.
– Hein? – diz o mercador.
– Não era andorinha – explica o ferreiro, cansado de tanto movimento. ‒ Eram duas pombas, e das baratas.
O pobre chama o último:
– Ei, você aí de um olho só…
Ao ouvir isso, o cego se prostra no chão. Em frente ao mercador, por engano.
– Meu rei! – exclama o cego.
– O quê?
– Chega! – grita o ferreiro. – Todos para fora! Rua!
Todos se precipitam para a porta, menos o cego, que vai de encontro a uma parede. O último corre atrás dos outros protestando.
– Parem! Primeiro eu. Primeiro eu!
O cego vai atrás do último.
– Meu rei! Meu rei!
O ferreiro, finalmente sozinho, suspira aliviado. Que dia!

*****

Do livro “Crônica Brasileira Contemporânea”,
Organização e apresentação de Manuel da Costa Pinto
Editora Moderna

Ditados populares do texto:

01. Cada macaco no seu galho → isto é, cada um deve ficar na sua.

02. Macaco, cuida do teu rabo e deixa o rabo do vizinho → designa pessoas que deixam de lado a própria vida para se preocupar com a alheia.

03. Águas passadas não movem moinhos → serve como um ensinamento para que as pessoas consigam superar acontecimentos do passado e possam seguir com suas vidas.

04. Estou num mato sem cachorro → isto é, estou na miséria e sem perspectiva.

05. Se a montanha não vai a Maomé, vai Maomé à montanha → Maomé, quando criou o islamismo, quis provar a força da religião aos novos súditos dando ordem para que o monte Safa, na Arábia Saudita, viesse até ele. O monte não andou. Então Maomé disse: “Alá é misericordioso. Se Ele tivesse ouvido minhas palavras, a montanha iria cair sobre nossas cabeças”.

06. Nem só de pão vive o homem → isto é, ele também deve viver para se divertir.

07. Pão, pão, queijo, queijo → isto é, não complique o que é simples.

08. Estar com a faca e o queijo na mão → significa estar com todas as possibilidades para resolver, concluir, fazer, determinar, etc., uma questão.

09. O pão que o diabo amassou → é uma expressão popular que significa passar por um grande sofrimento ou por grandes dificuldades.

10. Faca de dois gumes → situação que pode ter um lado positivo e um lado negativo, ou vantagens e desvantagens.

11. Pior cego é o que não quer ver → expressão usada para definir as pessoas que finge que não vê, que faz vista grossa, para um problema que pode ser enfrentado se encarado de frente.

12. Mais depressa se pega um coxo que um mentiroso → pois o coxo não dá pra enganar e o mentiroso engana bastante, por isso é que é mais fácil pegar o coxo.

13. Mais vale uma pomba na mão do que duas voando → significa que vale mais uma coisa certa do que duas incertas.

14. Não se fala em corda em casa de enforcado → significa que não se conversa com alguém sobre assunto delicado ou que possa ofender ou mesmo magoar a pessoa.

15. Quando a esmola é demais, até o pobre desconfia → significa que ninguém dá nada se não for em troca de um favor...

16. Fazer ouvidos de mercador → significa fingir que não ouve; fazer-se desentendido; não querer ouvir; não prestar atenção; fazer orelhas moucas; não dar importância.

17. Em casa de ferreiro, espeto de pau → é usado quando uma pessoa refere-se a alguém que é hábil para determinada profissão, mas não usa desta habilidade em favor próprio.

18. Não atira pedra quem tem telhado de vidro → isso quer dizer, caso você venha criticar alguém, se sentindo no direito de repreender uma pessoa por uma atitude que esta cometeu. Aceite o direito de resposta desta. Quem tem telhado de vidro, nunca quebra o do próximo.

19. Não se coloca tranca depois da porta arrombada → significa que devemos tomar cuidado antes das coisas acontecerem, porque, depois, o mal já estará feito.

20. Uma andorinha só não faz verão → diz-se para exemplificar que um trabalho em conjunto rende muito mais ou que uma pessoa sozinha não faz grandes coisas.

21. Os últimos serão os primeiros → aqueles que querem ser sempre os primeiros, muitas das vezes acabam por fazer tudo mal, enquanto que uma pessoa que não tem pressa, que faz as coisas com calma, acabará ganhando com isso.

22. Em terra de cego, que tem um olho é rei → é uma pessoa diferenciada por possuir aquilo que os demais não têm.



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