Istorinhas
Fraga, colunista
Erra uma vez
Era uma Errata errante. Mal digitada,
andava a esmo por entre volumes acadêmicos, ensaios científicos. Tentava ser
útil a códices e índices, esses livrões ávidos por exatidões linguísticas. Mas
agora, idosa, parecia desnecessária: um novo funcionário, um corretivo
eletrônico, não deixava serviço para trás. A Errata vagava, esnobada nos
teclados de universidades e faculdades, centros de estudos, academias. Sonha
com hecatombes digitais e a convoquem de novo.
Erário uma vez
Era um cofre público igual a qualquer
cofre público: qualquer chefe de escalão metia a mão. Nos tempos de
ilicitações, o Erário fazia de conta que suas contas fechavam. Aí nasceu, aqui
assim, lá nele, um rombo. De início um furinho, cresceu, cresceeeuuu. Hoje o
Erário tem dois poços no lugar dos olhos e fossa abissal em vez de boca. Sem
nada mais entender de finanças ou de física, virou um buraco negro na
administração pública.
Eros uma vez
Eros já fora parodiado várias vezes,
em muitos idiomas. E de pastiche em pastiche por todos os lugares, se tornara
enfarado de si mesmo. Tanto que seu erotismo desgastado em repetições fakes nem
pro gasto dava. Figura sem atrativos em orgias e surubas, a olhos vistos perdia
sua intensidade, em meio a banalizações visuais e explicitudes. Um dia Eros
acordou e viu-se transformado num imenso ser assexuado. E nem ao menos num
conto de Kafka era.
Hera uma vez
Era uma trepadeira atrevida:
esverdeava tudo quando era muro, muralha, parede, empena, lateral de prédios.
Iniciava pelo rodapé, disfarçada de broto, e subia. Quando viam, já tinha se
alastrado. Antes que engrossassem com ela, engrossava seus talos. Ignorada pela
consciência ecológica, sustentava a existência sugando a insustentável natureza
ao redor. Quando se deram conta, ops: Hera era um casulo a envolver a Terra. E
foi melhor assim pro planeta.
Heráldica uma vez
Escudos e brasões e bandeiras e
flâmulas eram o habitat da Heráldica. Endurecida em bronze ou mármore, passava
os séculos a admirar a História, seu álbum de recordações. Quando queria
desfilar por aí, vestia-se de cetins e sedas, e tremulava à frente de milhares
de adoradores. Porém seu simbolismo, miolo do ego, já não impressiona tanto.
Nem os antigos sinais de nobreza animam Heráldica. Às vezes vibra, ao se ver
reproduzida num ombro ou nádega. Mesmo assim não se engana: sabe que tatuagens
são efêmeras, duram enquanto o corpo dura. Heráldica suspira, saudosa da força
que possuía.
Errônea uma vez
Era um GPS desorientado: apegado ao
seu usuário, aprendia seus trajetos e costumes e os seguia. Um servia ao outro,
sempre chegavam aos destinos rotineiros. Até que a senilidade de um confundiu o
outro. O usuário foi parar numa casa de repouso. E o GPS, sozinho, nunca mais
achou o caminho pra casa.
(Do jornal Extra
Classe, outubro de 2017)
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