Guilherme Figueiredo
(adaptado)
Prato caluniado e glorioso, é
convocatório, ecumênico, político e coletivo. Ninguém deve comer uma feijoada
sozinho. Ninguém deve levar a namorada, a noiva, a esposa para uma feijoada a
dois. Sobre uma feijoada pairam sempre fumaças de discursos, que se precipitaram
na atmosfera eletrizada das batidas e desabam por cima dos participantes, numa
constelação de farinha, numa batalha de confete de mandioca! Um bom cozinheiro
de feijoadas, uma boa dona de casa, não organizam tal prato para duas ou três
pessoas: seria como fazer cantar uma ópera numa sala de espera. Uma feijoada
impõe ciências estratégica e logística, a técnica das sucessivas entradas de
artefatos nas panelas, dos sucessivos pelotões de utensílios na sala, enquanto
se inicia o fogo de inquietação sobre os convidados com lambadas de álcool e
limão; e se deixa vir sobre eles, em ondas, a ebulição do que vai acontecendo
na cozinha.
A feijoada, entretanto, começou na
feira, quando o português do paio, o vendedor de legumes, o da carne seca, observam
o movimento da freguesa e uma pergunta:
− Vai fazer uma feijoada?
E todos já sorriem, cúmplices... Há
um clima de expectativa a correr a rua, todos se sentem responsáveis... A notícia
do acontecimento pula os muros, sobe pelas paredes, com os cheiros. Alguém,
numa janela, diz com inveja:
− É no quatrocentos e dois!...
No quatrocentos e dois o dia D avança
para a hora H. O pessoal vai chegando; uns de blusão, já rindo, como os maus
humoristas; chegam senhoras, dizendo-se de regime, mas a carne é fraca; chega
um com violão; chega o convidado estrangeiro. O convidado estrangeiro contempla
a paisagem humana como Hans Staden contemplava os seus cozinheiros, de dentro
do tacho; e aperta de encontro ao peito o envelopezinho de sais efervescentes.
Mas vai logo sendo conduzido, pelo
violão, pela batida, pelo sorriso amável ao redor. E de repente já canta
também, e lhe rolam lágrimas prévias, de noiva.... E a dona da casa manda
anunciar: “Largaram!”
É um carnaval culinário. E ouvimos o
silêncio baixar sobre a horda celebrante, silêncio de reza de mandíbulas,
suspiros, e a onda reflui, volta para o segundo prato, os olhos brilham de
pimenta e amor, e vem mais batida para proteger cada um. O violão calou. Todos
calaram, o relógio de carrilhão bate baixinho, o retardatário entra pé-ante-pé,
o estrangeiro está catatônico, os suores perlam as testas, há uma quietude de
Maracanã antes de um pênalti que Rivelino vai cobrar, alguém ronca suave na
cadeira de balanço, os ventres cheios sussurram para si mesmos “Que pena!”, o
cigarro escorrega dos dedos dum cochilante, a dona da casa parece a estátua da
Liberdade no dia de ser inaugurada, e então alguém convoca as atenções: − Peço
a palavra!
Aí é a hora de convidar o estrangeiro
a sair à francesa. Não se preocupe, ele não quer sobremesa alguma, só está
pensando se algum dia chegará a ver Paris outra vez. Chegará. Mas, no dia
seguinte ao da festa, já esta convertido à feijoada.
Feijoada à Minha Moda
Vinicius de Moraes
Amiga Helena Sangirardi
Conforme um dia prometi
Onde, confesso que esqueci
E embora − perdoe − tão tarde
Conforme um dia prometi
Onde, confesso que esqueci
E embora − perdoe − tão tarde
(Melhor do que nunca!) este poeta
Segundo manda a boa ética
Envia-lhe a receita (poética)
De sua feijoada completa.
Em atenção ao adiantado
Da hora em que abrimos o olho
O feijão deve, já catado
Nos esperar, feliz, de molho
E a cozinheira, por respeito
À nossa mestria na arte
Já deve ter tacado peito
E preparado e posto à parte
Os elementos componentes
De um saboroso refogado
Tais: cebolas, tomates, dentes
De alho − e o que mais for azado
Tudo picado desde cedo
De feição a sempre evitar
Qualquer contato mais... vulgar
Às nossas nobres mãos de aedo.
Enquanto nós, a dar uns toques
No que não nos seja a contento
Vigiaremos o cozimento
Tomando o nosso uísque on the rocks
Uma vez cozido o feijão
(Umas quatro horas, fogo médio)
Nós, bocejando o nosso tédio
Nos chegaremos ao fogão
E em elegante curvatura:
Um pé adiante e o braço às costas
Provaremos a rica negrura
Por onde devem boiar postas
Um pé adiante e o braço às costas
Provaremos a rica negrura
Por onde devem boiar postas
De carne-seca suculenta
Gordos paios, nédio toucinho
(Nunca orelhas de bacorinho
Que a tornam em excesso opulenta!)
Gordos paios, nédio toucinho
(Nunca orelhas de bacorinho
Que a tornam em excesso opulenta!)
E − atenção! − segredo modesto
Mas meu, no tocante à feijoada:
Uma língua fresca pelada
Posta a cozer com todo o resto.
Feito o quê, retire-se o caroço
Bastante, que bem amassado
Junta-se ao belo refogado
De modo a ter-se um molho grosso
Que vai de volta ao caldeirão
No qual o poeta, em bom agouro
Deve esparzir folhas de louro
Com um gesto clássico e pagão.
Inútil dizer que, entrementes
Em chama à parte desta liça
Devem fritar, todas contentes
Lindas rodelas de linguiça
Em chama à parte desta liça
Devem fritar, todas contentes
Lindas rodelas de linguiça
Enquanto ao lado, em fogo brando
Dismilinguindo-se de gozo
Deve também se estar fritando
O torresminho delicioso
Em cuja gordura, de resto
(Melhor gordura nunca houve!)
Deve depois frigir a couve
Picada, em fogo alegre e presto.
(Melhor gordura nunca houve!)
Deve depois frigir a couve
Picada, em fogo alegre e presto.
Uma farofa? − tem seus dias…
Porém que seja na manteiga!
A laranja gelada, em fatias
(Seleta ou da Bahia) − e chega
Só na última cozedura
Para levar à mesa, deixa-se
Cair um pouco da gordura
Da lingüiça na iguaria − e mexa-se.
Que prazer mais um corpo pede
Após comido um tal feijão?
− Evidentemente uma rede
E um gato para passar a mão…
Dever cumprido. Nunca é vã
A palavra de um poeta… − jamais!
Abraça-a,
O
Texto extraído do livro “Para viver um grande amor”,
Livraria José Olympio
Editora – Rio de Janeiro, 1984, pág. 97.
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