segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Os sete pecados da pronúncia




Dad Squarisi*





Conhece a expressão “a sete chaves”? Pois saiba que ela esconde um senhor mistério. Trata-se do número. Em Portugal, lá pelo século 13, não havia cofres. Dinheiro, documentos, joias, metais preciosos & tudo o mais que exigia proteção guardavam-se em arcas de madeira. Elas tinham quatro fechaduras e, claro, quatro chaves. Cada uma ficava com um servidor pra lá de graduado e merecedor da total confiança do rei. Abrir o baú implicava cerimônia cuidadosa com a presença do quarteto.

Pergunta-se: o que “a quatro chaves” tem a ver com “a sete chaves”? Resposta: o mistério. O povo considerou o quatro sem graça. Preferiu o cabalístico sete para designar segredo bemmmmmmmmmmmmmm guardado. A expressão dava ideia da curiosidade que o conteúdo tão protegido despertava em homens, mulheres e crianças.

Desvendado o enigma medieval, vale decifrar mistério contemporâneo. Trata-se da pronúncia de sete palavras. Por motivos que até Deus ignora, elas caíram na boca do povo e da elite. Mas, a exemplo do quatro que virou sete, trocou-se a sílaba tônica dos vocábulos. O resultado é um só: a silabada bate pesado nos ouvidos. Quem sente o golpe não deixa por menos. Foge. Os mais sensíveis são os apaixonados. Sem resistir à dor, eles partem pra outra. Perdem-se promessas, juras e eternidade. Confirma-se, assim, fato pra lá de conhecido. O amor é cego, mas não é surdo. Olho na fortona (de forte):

Subsídio

Esta palavra joga no time de subsolo, subserviente, subsalário, subsaariano, subsimilar, subsíndico, subsinuoso. Em todas, o s que vem depois do sub se pronuncia ss. Sem tossir nem mugir.

Recorde

Recorde, concorde e acorde orgulhosamente pertencem à equipe das paroxítonas. A sílaba mandachuva é cor sim, senhor. Dizer “récord”? É a receita do cruz-credo (e da Globo). Xô!

Rubrica

Rubrica e fabrica são irmãzinhas inseparáveis. A força delas mora na casa do meio - a paroxítona (bri). A dupla tem vizinhos legais. À direita, a senhora oxítona. À esquerda, a dona proparoxítona. Confundir endereços? Valha-nos, Deus. Papai Noel entregará os presentes para quem não pediu. Convenhamos: ninguém merece pagar tal mico.

Nobel

Mabel, papel e cruel se pronunciam do mesmo jeitinho. A sílaba tônica é a última. Na dúvida, pense um pouco. Se Nobel fosse paroxítona, pertenceria à gangue de móvel e automóvel. Teria acento. Como não tem, a conclusão é uma só. O nome do prêmio mais cobiçado do planeta é oxítono e não abre. PT saudações.

Ibero

É a forma alatinada de ibérico. Trissílabo e polissílabo têm o mesmo significado. Designam os originários da Península Ibérica, que engloba Portugal e Espanha. A menorzinha mantém a marca da grandona. A sílaba tônica de ambas é a mesma − be. Diga, pois, sem medo de errar: cúpula ibero-americana, povos ibero-americanos, presidentes ibero-americano.

Gratuito

Fortuito e circuito são como unha e carne. O ui forma ditongo. Não se separa nem com sangue, suor e lágrimas. Vamos combinar? Se a fortona recaísse no i, o acentão pediria passagem como em cuíca.

Linguiça, tranquilo, cinquentenário & Cia. perderam os anéis, mas mantiveram os dedos. Em bom português: a reforma ortográfica lhes cassou o trema, mas a pronúncia nem ligou. Sabida, hein? A reforma é ortográfica. Só atingiu a grafia das palavras.

*****

*Dad Squarisi fez curso de letras na UnB. Tem especialização em linguística e mestrado em teoria da literatura. É editora de Opinião do Correio Braziliense e comentarista da TV Brasília.


Nenhum comentário:

Postar um comentário