sábado, 28 de outubro de 2017

Balada para não dormir

Lourenço Diaféria


Eu não sou criança.
Eu sou de menor.
Criança tem pai, tem mãe, tem irmão.
Eu sou de menor.
De menor tem a vida.
Criança tem livro
com figura colorida.
De menor tem o código.
Eu sou de menor.
Criança aparece em anúncio bonito
pedindo brinquedo.
De menor não tem disso.
De menor é no dedo puxando o gatilho.
Criança tem disco da Xuxa
e do Balão Mágico.
Eu sou de menor.
Eu escuto o Ratinho.
Criança tem idade, faz aniversário,
apaga velinhas.
Eu sou de menor.
Eu já nasci grande,
sem mês e sem ano,
apago velhinhas.
Criança é bobinha.
Eu sou de menor,
imponho respeito.
Criança tem gênio.
Eu tenho manias.
Eu sou de menor.
Criança tem clube.
Eu sou de menor.
Eu tenho minha gang.
Criança tem sítio
com pato, galinha, vaca,
bezerro, carneiro, cabrito.
Eu sou de menor.
Eu nado, me afogo, na funda lagoa.
Eu sou de menor.
Se toco na banda ninguém me elogia, prestigia.
Se engraxo sapato ninguém diz “legal”.
Eu sou de menor.
Criança depende do bolso do pai.
Eu sou de menor.
Eu guardo automóvel com cara de anjo.
Divido a grana com os marmanjos.
Me viro, me arranjo.
Como pastel, tomo caldo de cana,
descolo hambúrguer de gente bacana.
Eu sou de menor.
Atravesso vitrô,
eu furo parede,
eu cavo buraco,
eu salto muralha,
eu miro no alvo, derrubo cigarro,
endireito cano de curva espingarda,
sento na borda da escada rolante,
levanto os dois braços na montanha russa.
Frequento os cinemas da avenida Ipiranga,
e tudo que passa eu já sei de cor.
eu sou de menor.
Nada tem graça.
Às vezes me escalam para ser criança.
É tarde demais.
Eu sou de menor.
Já morreu o sol da aurora da vida,
saudades não tenho.
Eu sou de menor.
Sou a vidraça quebrada
pela pedra do adulto.
Sou o rosto molhado na água da chuva.
Sou fliperama, o barraco, a marquise,
sou dois olhos mordendo a luz do moinho.
Eu sou o trapo enxotado da loja,
o cara suspeito empurrando carrinho.
Sou o discurso jamais realizado.
Sou a face clara da fortuna escondida.
Sou o cão magrela do banquete desperdiçado.
Sou o lado contrário do cabo da faca.
sou a garrafa vazia jogada no mar
que volta coberta de restos da morte.
Eu sou a resposta que não espera perguntas.
Aqui estou. Nada mais sinto.
Apenas digo: Cuidado!
Não sou criança.
Meu nome é:
De menor!



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